quinta-feira, 24 de abril de 2014

Zakarella


 O blog Tralhas Várias tem andado a disponibilizar versões em CBR desta revista clássica de bd de horror portuguesa. A revista em si pouco tem de extraordinário, sendo essencialmente um veículo de reimpressão traduzida de comics da Creepy e Eerie. O que a distingue são as aventuras da personagem que lhe dá nome. Escritas pelo inimitável Roussado Pinto, são deliciosos delírios pulp com contornos a roçar no erótico.


Serva de Satã que se escapa para a Terra, Zakarella vive aventuras macabras onde enfrenta psicopatas, amantes enlouquecidos de luxúria e alienígenas com aspecto de polvos que invadem Leça da Palmeira. Porque esta terra de fim de mundo? Confesso que adoraria saber o porquê disso. Faz tão pouco sentido ter ovnis a aterrar em Leça como um Conde Cagliostro vampiro a derrotá-los sugando-lhes o sangue alienígena. Mas nos mundos ficcionais de Ross Pynn isto é possível. Isto, e servos do demo transformados de homens em répteis couraçados (excepto num ponto muito determinante da anatomia humana), a ameaça dos infernóides, os habitantes do inferno que na mente destravada do autor é uma espécie de carraça física incrustada na Terra, e muitas referências à nudez voluptuosa da inocente Zakarella, disfarçada nos atributos físicos mais estratégicos por minúsculas placas de metal. Apesar do óbvio carácter erótico, esta série não descarrila na pornografia elementar, ao contrário de personagens de características similares como Sukia ou Zora, que se ficam pela aura de sobrenatural enquanto se desenrolam em centenas de páginas de BD porno. Zakarella mantém-se na sugestão com toque explícito, com a narrativa focalizada nas bizarrias aventureiras.


Devo confessar que estou a adorar descobrir esta preciosidade da pulp fiction portuguesa. Pensava que se tratava de BD, mas não. É conto episódico, de escrita em tom de metralha delirante, clássico exemplo do dito tão mau, tão mau, que se torna bom, ilustrado pela iconografia brilhantemente pulp do desenhador Carlos Alberto Silva. Neste país tão parco em tradição do fantástico, em particular deste divertido fantástico simplista de recorte popular e comercial, estes delírios visuais deslumbram por parecem quase inéditos (e sim, eu sei que se a tradição do fantástico por cá é parca, não deixa de existir, mas um punhado de grãos de areia não faz um areal, por bons que sejam os grãos). Os digitalizadores do blog vão disponibilizando edições deste clássico, que merece visitas atentas a alfarrabistas para adquirir exemplares sobreviventes ao tempo. Isto merece um espaço nas estantes dos fãs e coleccionadores de literaturas alternativas.

A curiosidade sobre Zakarella enquanto personagem foi-me desperta pelo trabalho de Nuno Amado, que tem tentado de forma independente recriar as aventuras da personagem em BD, com resultados muito promissores. Melhor do que o que eu poderia fazer sobre a história desta publicação, seus colaboradores e personagem, está este post no Leituras de BD sobre a Zakarella. Cá por mim irei descobrindo graças ao trabalho de preservação digital, mantendo um olho atento quando passar por feiras do livro e alfarrabistas (algo que faço muito menos do que desejaria por ter um patrão que insiste em cortar-me o ordenado com regularidade avaliativa troikista, mas vejam o lado positivo, é tão bom ser moralizado nos meus gastos pela asfixia económica). Quando o livro da Zakarella chegar ao prelo, cá estarei para lhe dar um espaço nas estantes. A descoberta recomenda-se, porque esta literatura delírante retro é uma pedrada no charco do que se espera das letras nacionais.