sexta-feira, 25 de abril de 2014
Demodé
Confesso que houve uma altura que pensava que havia um destaque excessivo ao 25 de Abril. Com todo o respeito à época e seus ideais, pensava, as conquistas já estavam feitas, Portugal era um país melhor, livre e virado para o futuro. Para quê, então, tanto olhar nostálgico para um tempo que passou? Hora de olhar em frente, agarrar o futuro, continuar a construir um país progressista, tecnologicamente avançado, com os pés assentes com firmeza no século XXI.
Bolas, que estava bem enganado.
Nestes últimos anos assistimos e sentimos, com um sentimento de profunda impotência, uma colisão destrutiva de crise financeira, instituições internacionais e ideologia global que deu nova energia a velhas forças revanchistas que aproveitaram muito bem a oportunidade para refazer o mundo à sua imagem ideal. Escrevo "mundo" porque o problema é global, não local, e os desmandos que por cá se passam são replicados em quase todos os países do mundo. E no que sobra do quase a situação não é melhor. O mundo avançado e progressista está a ser redesenhado com contornos que parecem saídos da época vitoriana. Bem vindos ao século XX, festejemos como se fosse a Belle Époque (não é por acaso que o economista francês Thomas Piketty a utiliza como analogia para caracterizar o fosso abismal de desigualdades que está a caracterizar este novo século).Por cá, as conquistas que se pensavam cimentadas na sociedade estão a ser pulverizadas com a eficiência de um blitzkrieg pelos novos cruzados, herdeiros de velhas ideologias.
Continuamos livres, é certo. Continuo a ter a liberdade de ler o que me apetece, escrever o que quero e expressar o que me vai na alma sem medos de ter um zeloso funcionário de uma qualquer polícia secreta a bater-me à porta para cumprir o seu dever, a bem da nação. Mas a cada dia que passo sinto as outras liberdades, tão ou mais essenciais como direitos humanos que a de expressão, a ser erodidas com uma ferocidade que causa espanto. Talvez até a própria liberdade de expressão, ameaçada por media sujeitos ao controle editorial de interesses financeiros e políticos que conseguem canalizar o espaço de ideias da opinião pública de uma forma mais elegante do que os meios clássicos de controle mediático. Ou, posto de outra forma, hoje não precisamos de prisões políticas, temos reality shows.
Em causa está a liberdade de uma vida digna, de um trabalho decente, de não ser um elemento precário para servir as necessidades fugazes dos interesses económicos, os direitos sociais elementares à educação e saúde, a liberdade de viver no país em que se nasceu sem ter de emigrar para escapar ao deserto, a liberdade de acreditar num futuro. A liberdade de viver uma vida e não ser um servo do feudalismo de uma economia de soma zero. O pior é perder a liberdade de acreditar no futuro. Se a esperança é esmagada pouco resta, e os braços perdem a força.
Hoje seria demodé imporem-nos a moral e os bons costumes, mas exigem-nos que aceitemos este inverter do progressismo em nome do progresso modernizador liberal (três grandes ideias tão desvirtuadas num tempo em que as forças retrógradas até o uso da língua apropriaram e desvirtuaram) com apelos à responsabilidade e consenso, as novas palavras-chave que mal disfarçam o conservadorismo bafiento de quem tanto as utiliza. Os últimos anos mostraram como as velhas forças continuam activas e a ferocidade com que agem mal encontram oportunidades. A crise financeira, provocada pelo aventureirismo sem escrúpulos da alta finança, permitiu o maior ataque de sempre aos direitos, liberdades e garantias, com o apoio activo de instituições globais, algumas das quais profundamente desvirtuadas, como a União Europeia liderada por políticos que traem abertamente o ideal de construção europeia.
Temos o 25 de Abril como símbolo de esperança, da construção de uma sociedade melhor, do que somos capazes de fazer e da força para enfrentar obscurantismos. Nestes dias cinzentos, não do sol que lá fora brilha mas das ideias cinzentas que nos vão na alma, é cada vez mais importante recordar, dignificar e manter viva a chama do grande momento de viragem que nos deu o Portugal moderno que, ao invés de ser melhorado, está a ser sistematicamente desmantelado. Esta crise, estes retrocessos à democracia, igualdade e liberdade, não se ficam por aqui, ou pelos países intervencionados pelas troikas. Vive-se à escala global. Diria que precisamos todos de um 25 de Abril, porque o século XXI não merece que os seus sonhos sejam traídos pelos saudosistas da Belle Époque. E quanto a nós, que não o esqueçamos. Se há algo que os últimos anos sublinharam foi a imensa dívida que temos para com os homens que ousaram inverter o estado das coisas.
(Momento nostálgico: recordo-me de ser criança e o meu pai me levar às comemorações do 25 de Abril na Alameda, que nos anos 80 era algo ao estilo Festa do Avante, cheia de barraquinhas de bifanas e muita bandeira vermelha. Arrancado aos meus livros e às minhas brincadeiras de imaginação, não achava muita piada aquilo mas recordo-me do sorriso feliz do meu pai nesses dias. Anos depois, percebi. Quando faleceu, a sua urna foi descida à cova ao som da música que mais amava. Recordo nesse dia luminoso o silêncio opressivo sobre o cemitério, quebrado pelos acordes de esperança do Grândola Vila Morena.)