quinta-feira, 24 de abril de 2014

Flash Boys



Michael Lewis (2014). Flash Boys. Nova Iorque: W. W. Norton & Company.

Quando comecei a ler sobre este livro, que despertou a atenção de vozes críticas como John Naughton ou Cory Doctorow pelo vislumbre que nos dá do mercado bolsista na era dos algoritmos de compra e venda que automatizam e aceleram os processos de mercado, assumi que se tratasse de um technothriller com o pulso na hipermodernidade tecnológica, à semelhança dos romances de Daniel Suaréz. O livro tem de facto este carácter, mas não é uma aventura ficcional entre o policial e a ficção científica. É um relato jornalístico, muito real e interventivo, que acompanha um grupo de corretores que percebeu os vícios do mercado bolsista e se dedica a construir uma bolsa que esteja ao serviço dos investidores. E no caminho é uma introdução estrondosa ao trading algorítmico e às coisas extraordinárias que se fazem para reduzir em milisegundos o tempo das transações.

Não fiquemos à espera de um livro detalhado sobre a tecnologia de base desta forma de trabalhar em mercados financeiros. Os pormenores necessários estão lá, desde o investimento em infraestruturas dedicadas ao trabalho dos programadores que afinam estratégias em programas capazes de maximizar lucros de compra e venda. O real foco deste Flash Boys é a ganância desmedida dos principais intervenientes no mercado, as agências de corretores, que afirmam ter sempre o melhor interesse dos seus clientes em mente mas procuram as estratégias mais esotéricas para os prejudicar e maximizar os seus lucros pessoais. Isto, note-se, no rescaldo da crise financeira que obrigou os estados a pagar a factura dos anteriores desmandos do grande capital. Contas pagas, e a festa continua, agora afinada e acelerada por meios tecnológicos.

Um dos primeiros mitos que Lewis destrói é a ideia da bolsa como local onde corretores executam ordens de compra e venda. A imagem romântica de filmes como Wall Street (intuam "romântico" com ironia) é hoje quase inexistente. Desregulamentação, pressões do mercado e, paradoxalmente, regulamentos que visam proteger investidores mas são tornados de forma maquiavélica fragmentaram os locais de compra e venda. Em vez de bolsas clássicas existem hoje dezenas de bolsas electrónicas, mercados digitais de altíssima velocidade onde é quase impossível perceber o que se passa no seu interior. A velocidade de transação é um dos factores, outro é a opacidade intencional colocada pelos criadores destas bolsas. É aqui que se centra o livro, na análise feita por elementos de um banco canadiano que tentavam perceber porque é que perdiam dinheiro nos investimentos e se aperceberam que em mercados opacos cuja garantia de respeito pelas regras é dada apenas pela palavra daqueles que mais têm a ganhar com o desrespeito dessas mesmas regras, e na sua luta por fazer algo diferente.

Algo que este livro sublinha muito bem é que há sempre pessoas por detrás das máquinas. Concebemos esta modernidade de algoritmos, aplicações, automatismos e robots como algo de impessoal, um mecanicismo que infecta a nossa visão do real, mas de facto por detrás destes mecanismos há pessoas que os criam, pessoas que tomam decisões, pessoas que influenciam a forma como os mecanismos agem. É confortável que estejam por detrás da ilusão da tecnologia como algo mágico, quase com vontade própria. É uma excelente forma de fugir ao escrutínio público e poderem fazer o que quiserem. É esta falta de transparência a verdadeira ameaça que enfrentamos. Neste livro Lewis mostra como estes decisores discretos conseguem manipular o mercado dito livre a seu favor mantendo a ilusão da aplicação de regras e da liberdade do mercado. Se extrapolarmos esta tendência resvalante para outras áreas onde a automatização digital se faz sentir, percebemos os perigos sociais advindos deste impulso tecnológico. São as escolhas que são feitas que determinam as suas consequências. E se não houver transparência nestas escolhas, quer por se alegarem razões de força maior, de segurança, de responsabilidade, ou outras que se vão por ai ouvindo, não temos nenhumas garantias que estas respeitem os princípios sociais consensuais da tradição equalitária democrática. Sem querer cair em teorias da conspiração, a prevalência de interesses sombrios não costumam ser saudáveis para o mundo em geral.

E sim, a infraestrutura técnica e a complexidade dos programas de computador que possibilitam os mercados digitais medidos à fracção de milisegundo são algo que parece saído de um delírio cyberpunk.