quarta-feira, 2 de abril de 2014
The Cambridge Companion to Science Fiction
Edward James, Farah Mendlesohn (2003). The Cambridge Companion to Science Fiction. Cambridge: Cambridge University Press.
Colecção intrigante de ensaios através dos quais se traça um retrato detalhado do que é a FC. Mostra a sua evolução histórica e analisa-a conceptualmente através de múltiplas perspectivas que incluem a sua iconografia intríseca e visões politico-sociológicas.
No seu ensaio Brian Stableford traça o percurso da ficção científica a partir das raízes das narrativas utópicas e das viagens extraordinárias, mostrando como o género evoluiu a partir de histórias com preocupações morais e sociais para um sentimento da importância da ciência e voos imaginários construídos a partir de hipóteses científicas. No processo fala-nos do emergir da ciência como elemento ficcional do romance aventuras em Verne e nos autores que antecederam a explosão dos pulps, essencialmente histórias de aventura que se socorrem de elementos científicos como ponto de partida narrativo. Olha também para Wells e mostra como a partir dele evoluíram as histórias de guerra futura, género muito em voga até à I guerra, onde a realidade sangrenta fez perder o apetite por titânicos combates imaginários. Esta vertente encontrou grande expressão nos escritores ingleses e foi satirizada por Robida em la guerre future. De Wells parte outra vertente de FC, a narrativa apocalíptica que mostra a humanidade extinta ou em vias de extinção, que encontra em MR James e William Hope Hogdson interessantes expressões. Stableford cobre uma enorme variedade de escritores, boa parte dos quais hoje esquecidos, mas incluindo nomes como Abraham Merritt (aventura e guerra futura), Conan Doyle (as aventuras do Professor Challenger nos mundos perdidos), Poe, Hawthorne, entre outros. Para Stableford a FC evolui das utopias e aventuras incorporando progressivamente elementos científicos, culminando nas narrativas pulp ao estilo de Hugo Gernsback onde o imaginário do artefacto tecnológico é o cerne da narrativa.
Em seguida analisa-se a tradição dos pulps como berço do que hoje consideramos FC. As obras seminais dos grandes autores da era clássica do género tiveram a sua génese nestas publicações, algumas das quais ambicionavam abertamente sair do recanto de publicações de qualidade baixa que viviam da reimpressão de contos clássicos e obras repetitivas de autores hoje felizmente esquecidos. Desenham-se aqui algumas clivagens profundas no género; a visão da FC didáctica e centrada na tecnologia de Gernsback, as preocupações literárias expressas pelo trabalho de edição de Jack Williamson, e a clivagem entre FC como literatura de entretenimento e FC como forma de expressão literária por direito próprio, centrada na interpretação da influência da ciência e tecnologia sobre a humanidade nas suas diferentes dimensões.
A fortíssima influência da New Worlds dirigida por Moorcock faz a ponte entre uma FC clássica, centrada num optimismo tecnológico e em visões de aventura para uma FC mais madura, de crescentes ambições literárias. Esta revista marca ao mesmo tempo o ocaso da FC pulp e das suas publicações, das quais hoje poucas restam, e a génese da FC enquanto género literário ambicioso, capaz de ao mesmo tempo se dedicar à exploração dos seus temas próprios e apostar na complexidade narrativa e estilística.
John Clute analisa a FC contemporânea enquanto fenómeno editorial, longe das raízes pulp, dividida entre repetitividade banal na exploração de mercados estabelecidos, autores mais experimentais que se atrevem a desafiar expectativas, o movimento cíclico de cisão e fusão em correntes literárias, e o despertar de sub-géneros que abrem novos caminhos à FC clássica.
A representatividade do género no cinema é analisada ao longo da história deste. Os filmes de FC surgiram nos primeiros tempos do cinema, e legaram-nos alguns dos maiores clássicos do grande ecrã. Mark Bould define três grandes momentos. Até aos anos 50 a FC vivia do poder dos argumentos e de efeitos especiais que transmitiam a sensação de estranheza dos mundos ficcionais através de cenarismo e dos processos mecânicos de filmagem. A partir dos anos 50 aprofundam-se os temas dos argumentos, com o surgir das visões radicais e do cinema de série B, bem como a complexidade técnica do efeitos especiais. Nos anos 90 assinala-se a transferência da FC do cinema para a televisão e jogos digitais, embora no cinema se distinga pela sua prevalência nos filmes blockbuster. No que toca a temas, Bould nota que replica os da FC literária, apesar de um ênfase na espectacularidade visual típica dos meios audiovisuais.
Gary Wolfe analisa o papel preponderante que os editores desempenham no género. Aponta a influência da visão editorial de Gernsback e Williamson para a definição da era clássica da FC, e sublinha o papel de Moorcock na redefinição do género. A tradição do conto de FC publicado em revistas especializadas é hoje mantido vivo por publicações como a Asimov e a Interzone. Para lá das revistas ainda é apontada a influência dos editores nos livros, com um fortíssimo diálogo entre o escritor e o seu editor. Outro pormenor a assinalar é a prevalência no género de antologias, cuidadosamente editadas, que permitem dar voz a novos autores e manter viva uma espécie de memória colectiva da evolução histórica e literária da ficção científica.
São abordadas algumas das perspectivas críticas sobre o género: a visão utópica, distópica ou transformativa da perspectiva marxista; a evolução da misoginia da golden age às visões contemporâneas mais complexas sobre o espírito feminino na perspectiva feminista; o futurismo hipermoderno, o lado experimentalista e o carácter fragmentário das obras mais arrojadas encaixam-se na visão pós-modernista; as questões de género, evoluindo da misoginia da FC clássica para visões fluídas e arrojadas são vistas pela perspectiva queer.
Gwyneth Jones analisa a iconografia da FC. Mostra-nos o classicismo dos foguetões, naves espaciais e habitats no espaço. A robótica, aqui subdividida em mecanismos, robots sentientes, robots sexualizados e mesclas homens-máquina funciona como simbolismo da relação física com outros, bem como medos de possível subserviência a tecnologias que se tornam mais avançadas do que os seus criadores. A ensaísta inclui aqui a vastidão de conceitos sobre espécies alienígenas. A construção de mundos ficcionais socorre-se em muitos romances de um sólido imaginário de reconstituição de espécies animais e vegetais que dá verosimilhança aos mundos de fantasia dos livros. Cientistas loucos e donzelas em busca de salvação são talvez dos mais banalizados ícones do género.
A relação entre FC e as ciências é analisada em diversos ensaios. Observa-se que conceitos de biologia e ciências da vida são rotineiramente explorados pelos autores do género, com ênfase nas visões de inteligência, teoria da evolução e o conceito de mutação, engenharia genética, reprodução sexual, bioesfera e ambiente. Os autores atrevem-se, nos seus e ses, a interrogar os limites teóricos destas ciências. Daqui parte-se para esse conceito aparentemente sólido mas de facto elusivo que é o de Hard SF, baseado em extrapolações de base científica (ou que o aparentam ser) e que tanto reflectem um optimismo ingénuo como um cinismo desencantado com potencialidades e consequências dos desenvolvimentos tecnológicos.
Analisar os sub-géneros leva-nos à space opera, que entre as suas virtudes e banalizações mantém vivo o espírito de aventura pura e exótica que tanto atrai na FC. A história alternativa merece igualmente destaque, pela visão especulativa com que se questionam as encruzilhadas da história, embora seja criticada por se manter nos limites restritos de algumas eras históricas, como o império romano, guerra da secessão ou II guerra, que por serem bem conhecidos do público se tornam o principal foco destas visões especulativas, embora não se reduzam apenas a estes momentos. As utopias e distopias não poderiam faltar nestas análises, sendo a FC o veículo contemporâneo para dissecar e levar ao extremo através de experiências de pensamento aplicadas à literatura ideias sobre as possibilidades de sociedades perfeitas, ou o seu inverso.
Política é um campo que é esquivo à FC, preocupada com outras questões de fundo, mas não deixa de ser abordado. Heinlein e a sua visão hiperliberal quase fascizante é aqui a referência explorada, embora também se note que imaginar sociedades implica exprimir visões de organização política. Já o campo da sexualidade e questões de género tem sido melhor explorado. A misoginia e infantilidade pubescente das abordagens a estas questões pela FC clássica foi erodida pelas vertentes trazidas por autoras que desafiaram a prevalência masculina na FC e nos têm vindo a legar visões que vão equilibrando os géneros. O espectro aqui é largo e vai do feminismo assumido à fluidez relacional.
A FC talvez seja um dos últimos redutos do homem branco europeu, onde questões de etnicidade não são comummente abordadas por autores mais interessados na extrapolação científica ou visões arrojadas de um futuro com raízes no iluminismo. Alguns trabalhos despertam consciências e alertam para questões de raça e xenofobia.
O livro termina com uma visita à religião e espiritualidade na FC. Apesar do carácter eminentemente pró-ciência e tecnologia do género, há várias formas de perceber o lado espiritual da FC. O espírito que anima a FC, com visões abrangentes de transcendentalismo humano através da ciência ou exploração espacial, pode ser apontado como uma visão eminentemente espiritual. A religião em si também encontra expressão no género, quer através de uma visão negativa que anima a FC clássica de base céptica que vê a religião como um bastião de obscurantismo, ou um reconhecimento da importância da espiritualidade transmitida através da caracterização de culturas alienígenas onde a religiosidade é preponderante.