terça-feira, 1 de abril de 2014

The Futurological Congress: From the Memoirs of Ijon Tichy


Stanislaw Lem (1985). The Futurological Congress: From the Memoirs of Ijon Tichy. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich.

O futuro é um lugar surreal neste livro que, apesar de escrito há algumas décadas atrás, consegue ser incisivo de forma arrepiante na premonição da ilusão de um real desmaterializado para o qual hoje alegremente caminhamos. No mundo deste Congresso a virtualidade é trazida por químicos que distorcem a percepção e ocultam do cérebro ocupado a imaginar realidades sumptuosas a suja decadência do real tangível. Já nós preferimos sonhos binários dos algoritmos de simulação. Em 1974, data da publicação original deste romance, a incipiente tecnologia digital andava muito longe dos nossos paraísos artificiais contemporâneos e faria mais sentido a escolha do olvido químico como motor das visões de utopia.

Devo ter lido este livro de Lem há longos anos atrás. Ao ver o filme O Congresso, baseado nesta obra, tive de o reler para perceber onde é que o filme e o livro se tocam. Apesar da temática do filme ser fundamentalmente actual, intersectam-se mais do que se imaginaria. Se o trabalho de Folman toca na desmaterialização digital, impulsos económicos que a estimulam, e especulação sobre as consequências da progressiva automação e transferência do que é humano para algoritmos computacionais, o lado profundamente alucinatório do livro de Lem transparece na estética e na evolução narrativa do filme. Adaptado, é certo, mas algumas das mais intrigantes cenas são decalcadas com alterações ditadas pelas escolhas estéticas de um realizador erudito que está tão à vontade a citar o grotesco dos cartoons de Max Fleischman como o psicadelismo de Yellow Submarine, ou a desvirtuar a inocência comercial do estilo Disney. É um filme que se recomenda vivamente.

Lem consegue ser ao mesmo tempo surreal e especulativo nesta visão alucinatória onde uma futura sociedade utópica é conseguida graças à magia dos químicos. No futuro vivido pelo eterno cândido de Lem, o peripatético Ijon Tichy, as substâncias químicas vieram substituir as tecnologias tangíveis. Numa sociedade sob efeito de psicotrópicos, todos habitam os seus mundos perfeitos e estão cegos para a dura realidade primitiva de um mundo à beira do colapso ambiental e populacional. Convencidos que a ilusão é a realidade, os habitantes desta utopia vivem uma vida irreal feérica enquanto os seus corpos decaem nas ruas arruinadas das cidades atafulhadas de pessoas. Mas, felizmente, o sonho das ilusões é em si uma ilusão provocada por um excesso de psicotrópicos calmantes de multidões durante uma revolta que arruína o Congresso Futurológico onde Tichy participa.

É desapontador que o livro termine com uma variante do artifício narrativo "e afinal era um sonho". Depois de levar esta surreal experiência de pensamento aos seus limites Lem não parece ter querido terminar com uma visão de completo desalento para com os possíveis futuros da humanidade. Esta variação altera o carácter da obra. De especulação catastrófica termina como romance de utopia satírica, categoria onde não fica nada mal a acompanhar Voltaire ou Luciano de Samosata. Recordo-me de ter lido algures que Lem, amante de ficção científica mas impossibilitado pelas limitações culturais impostas pelo partido comunista polaco de ler os influentes autores anglo-americanos, escreveu FC tal como imaginava que estes as escreveriam. Parece que ficou desiludido quando finalmente tomou conhecimento da FC de toque Gernsback e Campbelliano. A sua visão está mais próxima de um Borges ou de um Ballard do que de um Asimov ou Clarke. A sensibilidade da cultura da antiga europa de Leste, a crítica à retórica de um ocidente visto com olhar crítico e especulação pura mistram-se neste livro intrigante.