terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Night Film
Marisha Pessl (2013). Night Film. Nova Iorque: Random House.
Para os leitores sofisticados e imunizados de hoje o terror clássico não é suficiente. As velhas histórias de fantasmas e assombrações, os sustos das criaturas horrendas que saltam à frente e provocam calafrios, já não pegam. Esqueletos e espectros parecem-nos pueris, o CGI destruiu a visceralidade dos monstros. Resta o mistério, ou a escatologia pura das vísceras à mostra ou das atrocidades sangrentas, para nos causar aqueles delicioso desconforto que caracteriza o terror ficcional. Um pensamento que me ia correndo na mente enquanto mergulhei neste deliberadamente infenido Night Film.
Despojado de toda a aura de mistério e tonalidades de policial noir, este é um livro que replica o mais clássico dos terrores literários, a história de bruxaria. O que despoleta a história é o suicídio de uma jovem possuída, alguém cuja vida está nas garras das forças do mal. Temos um concílio de bruxos, centrado na figura de um esquivo realizador de filmes polémicos que se isola numa vasta propriedade para, com uma equipe de acólitos dedicados, criar cinema que mexe profundamente com os espectadores e é apresentando apenas em sessões ocultas do olhar da sociedade mainstream. Até, numa homenagem clara a Lovecraft, nos é dada uma mansão de família decadente, habitada por pessoas degenaradas que se dedicam ao mais tenebroso ocultismo, cujos túneis subterrâneos são portais para horrores inomináveis.
Ou então, num curioso aceno ao final mais clássico do conto de terror, não temos nada disto. Temos um segredo, uma doença física, um pai preocupado que procura curas longe das luzes da ribalta, terrores que são aluncinações, mal entendidos e acções que são interpretadas como manifestações do oculto mas são meras protecções de um segredo que se vai desvendando. O que dá força a este livro é o não se cingir deliberadamente a um estilo narrativo, apresentando inúmeras facetas que contribuem para a construção de uma imagem criada a partir de fragmentos. É na ambiguidade que residem os arrepios, na falta de certeza que se abre a porta para a possibilidade do horror.
A história é-nos contada pelo ponto de vista céptico de um jornalista cuja história anterior com o discreto mas poderoso realizador o levou a cair em desgraça. Passo a passo, de fragmento em fragmento, vai construindo e desvendando os segredos de uma família conotada com o oculto, vai perdendo um cepticismo que acaba por recuperar e, finalmente, abandonar. O seu périplo coloca-o em contacto com personagens que, de uma forma ou de outra, foram tocadas pela jovem suicida e pelo misterioso pai. Ler este livro assemelha-se a montar um puzzle particularmente difícil, onde o lugar das peças raramente é o que se supõe ser e nem no final se consegue ter a certeza de que está completo. O final do livro não encerra o mistério, e as hipóteses ficam todas no ar.
O carácter ambíguo da narrativa é espelhado pela sua forma fragmentada. Cada curto capítulo de uma aventura necessariamente linear dá-nos mais uma peça do puzzle narrativo, mas estas não surgem em sequência linear. Há momentos em que estamos a ler uma pura história de fantasmas, outros em que o tom é o de relato de atrocidades do oculto, momentos de infodump sobre a tradição da sabedoria mágica, outros puro policial procedimental com toque noir. A autora vai ainda mais longe neste carácter fragmentário recorrendo ao poder do digital para abrir o espaço do livro. Para além da narrativa dá-nos, na linha directa do modernismo de John dos Passos na hoje clássica trilogia U.S.A., fragmentos de informação, artigos, fotografias, sítios web, que graças à tecnologia contemporânea extravasam os limites físicos do livro e se abrem ao mundo online. A mensagem é óbvia: se a história que conta está meticulosamente planeada ela não é dada de mão beijada ao leitor. Este tem que a reconstruir, a partir dos fragmentos que são dados num ritmo implacável. Como no melhor contar de histórias, está em jogo o diálogo entre o leitor e o escritor.
A profundidade da homenagem à ficção de género está patente no final. Começa por recorrer ao artifício clássico de, após um crescendo de horrores, apresentar tudo como uma mera alucinação e interpretação errónea do banal. Conclui com um virar da mesa que leva o protagonista ao local mais recôndito do sul das américas, numa ilha isolada ao largo da Terra do fogo. Aí, como uma aranha no centro da sua teia, está o realizador de cinema, urdidor de ficções inquietantes e capaz de remisturar o real, modificando permanentemente a percepção daqueles que com ele se cruzam. Está lá, como o Coronel Kurtz nos interiores enevoados do Mekong ou o comerciante Kurtz nas trevas primevas do Congo. E só se chega a ele percorrendo um caminho de loucura, neste livro um de alteração de percepções do real ao invés da violência de Heart of Darkness, que transforma irremediavelmente aquele que percorreu um caminho que tem o seu quê de iniciático.
É revelador que o último parágrafo do livro nos prometa uma revelação final da verdade que nunca nos será dada. O que fica é uma obra brilhante, cuja leitura deixa um gosto a arrepio. Construída com precisão implacável, contada num ritmo que obriga o leitor a não parar de ler, é desaconselhável como leitura nocturna. Porque, mesmo sabendo que é um bem elaborado produto da imaginação, ficamos com uma sensação de inquietude quando fechamos o livro e apagamos a luz. Na escuridão, é uma sensação que demora a esvair-se.