terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Legs Weaver: Caccia al Tesoro; Tre Bambine in Pericolo; Il Trono di Sangue.


Stefano Piani, Fabio Jacomelli (1997). Legs Weaver #15: Caccia al Tesoro. Milão: Sergio Bonelli Editore S.P.A..

Para sublinhar que esta edição é uma profunda vénia de homenagem ao cinema de suspense Stefano Piano coloca Legs a declarar que o que vai contar ao argumentista da série futurista de BD de que é estrela é algo parecido com os filmes desse cineasta esquecido que foi um tal de Hitchcock. Esquecido no futuro imaginário da série. A homenagem começa pelo mcguffin, o artifício narrativo que este realizador tantas vezes utilizou e que se baseia no centrar da história num artefacto misterioso cuja forma e propósito só são revelados no final de tudo. E note-se que Piano o fez muito bem, criando uma aventura eficaz que une diferentes linhas narrativas de uma história de conspirações e mafiosos equivocados em que Legs acaba por ser uma personagem secundária, que apenas intervém quando o final se aproxima.

No futuro tornou-se prática comum entre os milionários a criopreservação como promessa de imortalidade futura. Os receptáculos de hibernação são armazenados em estações espaciais. Um destes é invadido por um comando de assaltantes que vai roubar uma cápsula a um dos milionários criopreservados. Infelizmente, no mesmo satélite está armazenado o corpo congelado de um chefe mafioso cujo filho interpreta o assalto como uma tentativa de assassínio e começa a exterminar mafiosos rivais que suspeita serem os mentores do atentado. É esta guerra de mafiosos que leva a agência alfa a envolver-se, mas depressa todos percebem que o mistério é outro e envolve uma viúva milionária que busca a todo o custo um artefacto que contém o ADN do marido. Com isso, espera desbloquear as riquezas congeladas mas, fiel ao espírito de suspense noir do episódio, irá ter um final irónico. E infeliz, e com o seu quê de horror clássico de Poe, encerrada num cofre-forte cheio de obras de arte e peças preciosas.

A afirmação do mcguffin e o enredo decalcado de um bom filme de suspense não são as únicas vénias ao cinema neste bem escrito episódio de Legs Weaver. As referências são muitas, desde mafiosos com o nome de Coppolla a personagens com semelhanças mais do que vagas a actores de cinema dos anos 60 e 70. E Piani ainda consegue meter uma cena dentro de um restaurante chinês com Legs a utilizar um gongo de bronze que roda pela sala fora para se proteger de um tiroteio que deixa qualquer leitor que se recorde do primeiro filme da série Indiana Jones a sorrir.


Luca Enoch, Patrizia Mandanici (1997). Legs Weaver #16: Tre Bambine in Pericolo. Milão: Sergio Bonelli Editore S.P.A..

Uma capa com Legs e bebés e um leitor mais atento ao historial deprimente da série pensa que estão reunidas as condições para o desastre. Daqui só pode sair parvoíce, recordando aqueles filmes onde actores que se distinguiram como heróis de acção apostavam no mercado da comédia familiar com fraldas à mistura. Mas com Luca Enoch no argumento a coisa safa-se. A história tem o seu interesse, girando à volta de clones de crescimento acelerado destinados a servir de corpos substitutos para um milionário idoso. Tem um certo ar de mau filme de série B com cabeças ambulantes que vão saltando de corpo em corpo e bebés geneticamente modificados que crescem em pouco tempo mas, curiosamente, deixam de envelhecer quando se tornam em voluptuosas jovens raparigas. Cujas cabeças trocam de corpo a bel prazer. Porque enfim, ficção pop italiana. Há razões porque, como se diz na novilíngua da internet.

Sendo um argumento de Enoch há a assinalar algum cuidado com a gramática visual, numa linguagem que traduz preocupações de enquadramento e ritmo narrativo através da representação nas vinhetas. Não é por acaso que Enoch tem criado alguns dos mais interessantes fumettis que tenho lido. Destaca-se pelo rigor, por não ter medo de mexer com temas quentes, e pela preocupação por um contar de histórias que conjuga texto, imagem e ritmos criados pelos enquadramentos. Comecei a notar estas características em Gea, mas é em Lilith que tem atingido o expoente máximo.


Stefano Piani, Patrizia Mandanici (1997). Legs Weaver #17: Il Trono di Sangue. Milão: Sergio Bonelli Editore S.P.A..

Uma leitura dolorosa. O argumentista fez um trabalho brilhante de referenciação cultural cinematográfica numa boa história em Caccia al Tesoro mas neste, pretendendo homenagear o teatro clássico, espalha-se ao comprido. Começa como uma boa desculpa para se rever o Shakespeare de Macbeth mas fica-se por um lamaçal impossivelmente entediante. Ficamos a saber que a aguerrida Legs gosta de ser actriz nos tempos livres e ao envolver-se com um grupo teatral que ensaia uma das icónicas peças do bardo inglês fica enfiada nos mistérios de assassínios sem explicação. Ou aliás, quero dizer, explicações há mas esta leitura nem na diagonal foi suportável, por isso fiquemos por aqui. O único pormenor interessante é que Piani, talvez por acaso, acaba por adensar a natureza da relação entre Legs e May, a voluptuosa companheira de armas, aventuras e casa. Nunca me canso de qualificar May como voluptuosa, porque o é. Leitores mais atentos já teriam percebido que a natureza da relação entre as duas heroínas vai mais longe do que a simples amizade e companheirismo. Não é explicitado, mas os indícios apontam fortemente para que Legs e May sejam de facto um casal. Tal é sugerido, e compreende-se porque possivelmente, nos anos 90, o assumir de uma postura lgbt num fumetti mainstream num país de tradição católica como Itália levantaria fortes discussões. Ou talvez não, não conheço a mentalidade do país assim tão bem. É também notável que se a sexualização da série é fortíssima o caminho óbvio de pornografia light com as duas amigas não é trilhado. Os argumentistas estão sempre à procura de pretextos para tirar as roupas Legs, e particularmente a May, mas daí não passa. É um pormenor curioso, mais complexo do que se esperaria, mas não chega para compensar o desastre bocejante que caracteriza a maior parte dos livros desta série. E não, não vou falar do futurismo datado mesmo para os padrões dos anos 90.