sábado, 28 de julho de 2012

The Penelopiad

Margaret Atwood (2005). The Penelopiad. Edimburgo: Canongate.

Cada história é um ponto de vista e algumas primam pela riqueza de visões alternativas, facetas visíveis de um cerne narrativo que nos toca, mesmo ao fim de milénios. Clássico da antiguidade, a odisseia de Ulisses é habitualmente contada como uma gesta heróica, onde um herói astuto consegue vencer com força e inteligência os obstáculos que impedem o regresso ao lar e aos braços da fiel esposa. Mas há que recordar que a versão contemporânea é o resultado de interpretações e visões díspares coligidas através dos milénios. Com raízes nas tradições orais mediterrânicas, nunca conseguiremos saber qual a primeira origem desta narrativa.

Histórias, contadas ao cair da noite em campos de caça, provavelmente com raízes em histórias mais antigas contadas sob o peso da rocha nas cavernas, mistos de lenda com impressões de acontecimentos históricos registados pela memória falível. Cada contador a adicionar o seu pormenor, a contar a sua versão. E hoje, milénios passados, convenientemente canonizados nas histórias míticas que vindas da antiguidade clássica ainda nos tocam a imaginação e a sensibilidade.

Margaret Atwood, com um delicioso toque feminino e feminista, conta-nos a odisseia pelo olhar crítico de Penélope, ícone da docilidade e fidelidade, arquétipo da perfeita dona de casa. E se, narra-nos Penélope, se as aventuras do marido não passassem de rebaldarias em tascas e bordéis, douradas como lutas contra monstros e sereias mesmerizantes para limpar o carácter de um homem simbólico que parte e tudo faz para não regressar? Este livro reflecte o conceito de submissão, lida com o pensamento crítico de quem a sofre mas consegue tornear, aos ditames incoerentes de deuses que têm prazer em brincar com a humanidade, e ao carácter patriarcal de uma sociedade dominada pelo homem. Penélope, sob a pena de Atwood, surge-nos como uma mulher astuta, capaz de tornear as imposições e vicissitudes como a água que, perante um obstáculo, não o derruba mas rodeia-o e segue o seu caminho - comparação que a escritora sublinha com o mito de Penélope como filha de uma náiade, que a ensina a ser como a água.

Restam as fatídicas doze servas de Penélope, enforcadas como traidoras por um Ulisses que regressou e fez valer os seus direitos esquartejando os repelentes pretendentes à mão, à cama e essencialmente à fortuna da mulher. Atwood representa-as como elementos simbólicos, vestígios de cultos matriarcais lunares suprimidos por elementos masculinos, que fazem valer a sua força aniquilando doze discípulas e conquistando a sacerdotisa suprema pela força da virilidade. As servas são as fiéis companheiras de Penélope, os seus ouvidos, o seu escudo sexual contra as investiduras dos pretendentes, as conspiradoras do tecer diurno que há noite é desfeito. Atwood sublinha a suprema injustiça de as heroínas serem assassinadas pelo herói, e esquecidas pela narrativa.

A Odisseia vista por Margaret Atwood apresenta-nos uma arguta Penélope, Ulisses como símbolo patriarcal, doze servas lunares, um Telémaco que oscila entre puto birrento e jovem insensato, e uma Helena que leva o carácter coquette da beleza aos extremos e à eternidade. Os deuses estão ausentes, e ainda bem, porque se não o estivessem deliciar-se-iam a brincar ou a violar vidas humanas. E no fundo, debaixo das altaneiras poesias, Penélope intui a real razão das disputas humanas - poder, terras, dinheiro, apelidados como objectos inúteis por quem está na eternidade mítica... mas no fundo as coisinhas brilhantes que nos levam, meros humanos, ao frenesi.