sexta-feira, 30 de março de 2007

Sombras entre o Nevoeiro



IMDB | The Others
Wikipedia | The Others

O que é que é preciso para realizar um bom filme de terror? Sangue, tripas, efeitos especiais virtuais mais reais do que a realidade? Ou uma excelente ideia, com uma realização cuidada? A promoção mediática do cinema de terror aposta mais nas primeiras opções, mas há filmes que escapam à tirania do efeito especial e se impõem pela elegância da sua concepção, pela simplicidade do seu conceito. The Others é um desses filmes, em que o esplendor dos efeitos especiais cede lugar à atenção à atmosfera, ao cuidado com a iluminação e À mestria visual no contar da história.

The Others é um filme cheio de surpresas, que nos conduz deliberadamente em sentidos errados. Passado na ilha de Jersey, algures após o final da II guerra, numa mansão vitoriana onde vive uma mulher viúva com os seus dois filhos. Grace, a mulher, crê que os seus filhos são fotossensíveis, com uma fortíssima alergia à luz que lhes poderá causar a morte em caso de exposição à luz solar. Grace isolou-se do mundo numa casa onde as cortinas estão sempre corridas, e onde todas as portas estão fechadas à chave, à espera que o seu marido regresse da guerra, sempre rodeada por um omnipresente nevoeiro.

A inusitada chegada de três novos empregados vem alterar as rotinas instaladas na casa. Grace convence-se que a casa está assombrada - ouve ruídos, as crianças falam de presenças perto delas, as cortinas abrem-se, as portas abrem e fecham-se sem explicação aparente. Os empregados reagem a tudo isto com uma estranha calma, dando sempre a entender que sabem mais do que aquilo que demonstram. Num pormenor macababro, Grace descobre um album de fotografias onde todos os fotografados parecem estar a dormir. A estranha governanta informa-a que as fotografias são de pessoas mortas - um costume do século XIX, que consisitia em fixar uma última recordação dos defuntos através de uma chapa fotográfica onde eles pareciam dormir em paz.

As assombrações continuam, num crescendo de terror clássco. A casa, sempre rodeadada por uma cortina de nevoeiro cerrado, está isolada do mundo. Os mistérios adensam-se - o que provocará os estranhos ruídos? Quem são realmente os três circunspectos e misteriosos empregados? Quem são, realmente, as assombrações?

Os momentos finais do filme tudo revelam, numa série de impressionantes reviravoltas que tiram o tapete ao espectador. Todos os sentidos possíveis apontados pelo filme no seu final se revelam errados, o mais inesperado acontece.

A reviravolta na história, o plot twist, é um interessante artifício comum à FC e ao Horror. O retirar o tapete dos pés do leitor/espectador, surpreendendo-o, faz desde longa data parte do cânone destes géneros (se é que podemos falar em cânones de FC e Horror). Mas não chega para fazer um bom filme, ou uma obra literária memorável. Em The Others, associa-se ao brilhante plot twist do argumento uma direcção de actores muito cuidada e uma fotografia minuciosa que, só por si, dá ao filme todo o seu ambiente de trevas e horror.

Do conjunto de actores destaca-se Nicole Kidman, que dá ao seu papel uma dimensão trágica, vitoriana, resplandecendo nos trajes de época em contrastes absolutos de luz e sombra. Do resto do elenco aguardam-nos interpretações limpas, bem dentro dos moldes daquilo que se espera de um filme de terror que se alimenta do suspense que causa. A fotografia opta por grandes contrastes, tétricos jogos de luz e sombra, onde aquilo que vemos são pequenos detalhes rodeados por um negrume tenebroso. A falta de luz é uma constante em todo o filme. Desde as trevas da casa à luz difusa dos dias enevoados, o filme socorre-se das sombras para salientar o seu carácter tenebroso.

Filmado na Cantábria por Alejandro Aménabar, este é um filme que surpreende, que utiliza eficazmente todos os truques dos cânones do horror sem nunca cair em lugares comuns, sem nunca explorar os efeitos de choque, que depressa se desvanecem, dos muito glorificados efeitos especiais. The Others é um dos poucos filmes que consegue despertar calafrios, o que não é dizer pouco. Na nossa época mediática, em que tudo se banaliza, é especialmente raro e precioso ver como os métodos mais tradicionais, as histórias mais clássicas, ainda são capazes de despertar calafrios e fazer recordar aquele velho medo ancestral das sombras e da escuridão - algo em que os filmes-espectáculo, recheados de esplendorosos efeitos especiais que tudo revelam e nada deixam para a imaginação se soltar, falham redondamente.