segunda-feira, 19 de março de 2007

Judas Unchained



Peter F. Hamilton, Judas Unchained, Pan Books, 2005

Wikipedia | Commonwealth Saga
SF Signal | Judas Unchained
Pandora's Star

O final de Pandora's Star foi quase insopurtável. No volumoso primeiro volume da saga da Commonwealth, Peter F. Hamilton pintou um diorama convicente de uma sociedade interestelar ameaçada por uma guerra à escala galáctica. Todos os fios condutores convergiram para um final em suspensão, um final desenhado para vincar que se estava apenas a meio da história. Judas Unchained é o resto, os capítulos que faltam, o concluir da história da guerra entre a humanidade e a entidade alienígena conhecida como Prime.

Por si só, o argumento de guerra interestelar não chega para caracterizar este livro. Grande parte da obra vai noutra direcção - numa caçada implacável para desmascarar os agentes de uma entidade obscura, o Starflyer, que manipula a humanidade na sua guerra contra o Prime, esperando sair vitorioso das ruínas de duas espécies destruídas. Durante mais de um século apenas uma organização desacreditada e considerdada terroristas luta contra esta estranha entidade e os seus sequazes, o instituto de pesquisas que investiga a nave alienígena descoberta no planeta mais longínquo da Commomwealth. É este o tema que dá o título, e o mote a Judas Unchained, a busca de provas de que o Starflyer é real, e o desmascarar dos seus agentes, insuspeitamente colocados nos postos mais importantes da civilização galáctica.

Tal como o primeiro livro, Judas Unchained segue os diferentes percursos de diversos personagens que acabam por se aliar há medida que a história se encaminha para o final. Paula Myo, a super-investigadora de Pandora's Star, prossegue a sua busca inexorável pelo Starflyer e seus agentes, ajudada pelos líderes da poderosa familia Burnelli. Nigel Sheldon, o super-industrialista, líder da mais poderosa dinastia da Commonwealth e um dos fundadores da sociedade interestelar, persegue várias vias na guerra contra os Prime - desenvolvendo novas armas e tecnologias avançadas de viagens translumínicas, enquanto manobra o conselho de guerra terrestre e, como contingência final, constroi uma frota que permite exilar os membros da sua dinastia caso o pior aconteça, e os Prime aniquilem a civilização humana. À parte de tudo isto, Ozzie Isaacs prossegue uma odesseia para além do espaço-tempo, caminhando por entre os caminhos da civilização alienígena dos Silfen, criaturas sardónicas avessas à tecnologia mas que deslocam a seu bel-prazer pela galáxia, seguindo os seus "caminhos", que são wormholes aparentemente dotados de vontade própria. Isaacs busca respostas aos grandes mistérios da galáxia - quem construiu a esfera de Dyson que conteve os Prime até à chegada da nave terrestre, e até onde levam os caminhos dos Silfen. Por entre estas duas grandes lutas, os jogos de poder sucedem-se, com uma míriade de personagens a intersectar-se neste gigantesco cenário galáctico. No final, tudo se conjuga, os velhos inimigos formam estranhas alianças, os traidores são descobertos, em muitos casos, tarde demais, nas posições mais insuspeitas. Tentar sumarizar a teia de fios condutores deste livro é quase impossível, pelo menos nos limites mais apertados de uma resenha que não se quer muito longa.

E tal como no primeiro livro, Peter Hamilton não nos poupa a descrições e a mergulhos no exotismo da sua sociedade futura, avançada mas não perfeita. Através das suas descrições Hamilton ofereçe-nos ideias deliciosas, que nos dão vontade de esperar por um futuro assim. A infinita variedade dos mundos da Commonwealth, ligados entre si pela rede de caminhos de ferro intersectada pelos wormholes que possibilitam a passagem instantânea entre mundos, a humanidade envelhecida mas sempre jovem, para todos os efeitos imortal graças às avançadas terapias de rejuvenescimento e, nos casos mais terminais, às maravilhas da clonagem e do implante de memórias. Mais uma vez Hamilton envolve-nos na estranheza das civilizações extraterrestres, explorando os mundos mágicos dos Silfen, produtos de uma tecnologia tão avançada que é indistinguível da magia (uma ideia profundamente reiterada por Arthur C. Clarke), as intricacias dos Raiel, a duplicidade da inteligência artificial incorporada na entidade planetária conhecida como SI, e esboçando melhor os Barsoomians, humanos adeptos da manipulação profunda do ADN que se afastaram radicalmente da humanidade (para os mais ferrenhos fãs de FC, fica a referência à Barsoom das aventuras marcianas de Edgar Rice Burroughs).

No entanto, houve um tema que ecoou na minha mente há medida que ia lendo esta obra: II Guerra Mundial. Encontrar este paralelo talvez seja culpa do meu fascínio por essa época histórica, mas ele está lá - toda a história da luta implacável da luta entre a humanidade e a entidade alienígena designada por Prime parece decalcada da história da II Guerra, com uma humanidade aliada a usar todos os seus recursos humanos, industriais e científicos para combater um inimigo que quando ataca, ataca de forma esmagadora e parece apenas interessado no genocídio da espécie humana - o que até se verifica, tendo em conta de Hamilton concebeu os Prime como a extensão mais lógica do paradigma da sobrevivência a todo o custo. Os Prime são no fundo uma única entidade, uma inteligência de colmeia dominada por uma única personalidade, incapaz de conhecer o livre-arbítrio e incapaz de conceptualizar a noção de indivíduo. A única forma de enfrentar a ameaça dos Prime parece ser o genocídio, tal como a forma de acabar com a guerra no mundo passou pelo arrasar da Alemanha e pelo bombardeamento atómico do Japão. Judas Unchained introduz uma poderosa arma final nas mãos da humanidade, uma bomba capaz de fazer explodir uma estrela, e parte dos enredos da obra giram precisamente à volta das decisões de usar esta arma final contra os Prime, sobrevivendo a humanidade ao seu genocídio cometendo ela própria genocídio. Felizmente, no final esta decisão é invalidada pela coragem de Ozzie Isaacs, que se lança numa missão quase suicida ao sistema dos Primes para tentar reactivar a esfera de Dyson e contê-los ao seu sistema solar.

Judas Unchained é um livro de leitura compulsiva, que nos obriga a ler sempre um bocadinho mais, sempre mais uma página, sempre mais um capítulo - o que no caso da prosa de Peter Hamilton é um pouquinho complicado - já li livros mais curtos do que o típico capítulo das obras deste autor. O sentido de acção é impecável, arrastando-nos pelas vielas do argumento até explosões catárticas onde tudo se coloca em jogo. Mesmo assim... o livro soa demasiado ao primeiro volume, e lê-se como um prolongamento demasiado longo. Por exemplo, o final estende-se por quatro ou cinco capítulos, o que começava a entediar - cheguei a temer que as peripécias da perseguição final ainda fossem prolongadas por mais uma traição ou contratempo. Mesmo assim, Judas Unchained é uma conclusão épica para a vasta saga da Commonwealth.