segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Pandora's Star



SF Signal | Pandora's Star
SFF World | Pandora's Star
Wikipedia | Peter F. Hamilton
Wikipedia | Space Opera

A space opera é um dos subgéneros de ficção científica mais conhecido pela sua amplitude de ideias. Uma boa space opera passa-se a uma escala galáctica, com os protagonistas a viverem esplendorosas aventuras por entre míriades de ambientes exóticos. São narrativas largas e abrangentes que traçam grandes dioramas de paisagens ficcionadas, com detalhes minuciosos perante a grandeza dos cenários. Uma boa space opera é sempre uma empolgante história que nos transporta para inúmeros mundos imaginários. E, de uma forma mais importante para os nossos sentidos, leva-nos a imaginar o que estará para além dos mundos descritos pelo autor, estimulando assim a nossa imaginação e garantindo o nosso interesse pela obra. Isto, claro, nas melhores obras do género, porque a própria abrangência subjacente ao tema pode dar origem a obras entediantes que deixam ao leitor uma sensação de obra inacabável. É o risco de algo tão ciclópico como a space opera.

Pandora's Star, de Peter F. Hamilton, é uma dessas obras ciclópicas cuja mestria no traçado de mundos, enredo empolgante e abrangência quase literalmente universal consegue manter a atenção do leitor fixada e a sua curiosidade espicaçada da primeira até à longínqua última página. O longínqua última página aplica-se bem nesta obra volumosa, e que é apenas parte de algo maior - o ciclo de Pandora's Star só se completa com o livro seguinte, Judas Unchained, o que significa que esta obra termina precisamente a meio dos acontecimentos. É algo que desperta um certo sentimento de desilusão, um pensamento de "e então, e...?" que só se anima perante a perspectiva de leitura da continuação. No entanto, há que reconhecer a mestria de um autor que agarra a nossa atenção durante mais de mil páginas... e ainda nos deixa a salivar com a perspectiva das maravilhas que podemos esperar em mais uma épica continuação.

Resumir a obra para efeitos de apresentação é tarefa quase impossível. Em Pandora's Star, Hamilton teceu uma intricada teia de enredos e sub-enredos, que se subdividem quase fractalmente, passados num cenário abrangente. Sem exageros, pode-se considerar que cada sub-enredo daria perfeitamente uma boa obra de fc. Todos juntos, tiram o fôlego ao leitor mais calejado.

O universo de Pandora's Star é descrito por Hamilton como o universo da Commonwealth, uma comunidade humana que se espalha por mais de 600 planetas. O futuro desta humanidade não é um futuro longínquo. Os acontecimentos de Pandora's Star passam-se trezentos anos após a nossa era contemporânea. A premissa básica de Hamilton é que num futuro próximo, o desenvolvimento da física dos buracos de verme (wormholes no seu nome original) permite à humanidade espalhar-se pela galáxia com um mínimo de investimento e sem necessitar das intricadas tecnologias associadas à clássica exploração espacial - bem como em tempos mínimos, uma vez que as vastas distâncias espaciais demorariam milénios a atravessar o fosso entre as estrelas. Até aqui, nada de novo - Hamilton respeita os princípios relativísticos do tempo com as suas viagens espaciais, e as teorias sobre wormholes, literalmente buracos no tecido do espaço-tempo, já são alvo de especulação por parte dos cientistas há algumas décadas. Entre outros, Stephen Hawking fala da probabilidade de os wormholes poderem permitir o acesso a outros locais do universo, permitirem viagens no tempo ou até mesmo o acesso a outros universos paralelos ao nosso. o falecido Carl Sagan, que especulou em várias obras de divulgação científica (algo que fazia com inagualável mestria) que poderia exisitir uma espécie de rede de auto-estradas galácticas baseada em buracos de verme, apresentou a ideia ao grande público na sua obra de ficção Contacto (que não sendo uma pérola literária, é sem dúvida uma obra influente, ainda hoje, pelo seu rigor e exactidão). Outra obra de que me recordo é uma colaboração entre Arthur C. Clarke e Stephen Baxter, The Light of Other Days onde os buracos de verme têm um papel preponderante. E são inúmeras as obras de fc, quer literárias, quer cinematográficas, quer televisivas, que utilizam como recurso este sonho quase mágico de abrir portais entre mundos que nos permitem passar de um mundo para outro como quem passa entre dois aposentos.

A consequência imediata do desenvolvimento da tecnologia foi a perda de interesse na construção de naves espaciais tripuladas. Para quê investir em missões custosas a destinos longínquos quando um portal tem resultados tão mais imediatos? A expansão humana faz-se assim através da abertura de portais, em busca de planetas habitáveis, de forma faseada. As fases de colonização espacial impedem a colonização desenfreada. Um sector de espaço só é aberto à colonização quando o sector da fase anterior é económicamente rentável. Isto implica que a comunidade de planetas, assente numa economia de mercado trans-planetária, é próspera e auto-sustentável. A Terra, planeta-berço, é o centro da espécie, um planeta em recuperação ambiental após as indústrias poluentes terem sido deslocadas para outros planetas, é local de vida aprazível e elegante. Ao seu redor, cósmicamente falando, situam-se os primeiros quinze planetas da primeira fase de colonização, gigantes industriais e económicos, para além dos quais se situa o espaço de segunda fase, cujos planetas são agora auto-sustentáveis e económicamente viáveis, permitindo a abertura dos planetas de terceira fase à colonização. Apesar desta colonização exponencial, o corpo da federação de planetas não é monolítico. Cada planeta têm o seu carácter próprio, as suas instituições, hábitos, cultura e costumes, desenvolvidos ao longo de séculos, bem como uma saudável coexistência com ecossistemas alienígenas. Há até planetas que cortaram os seus laços com a comunidade, ou cujas culturas evoluíram de forma tão indesejável que a comunidade cortou os seus laços físicos e políticos.

Entre tanto espaço, a coexistência com formas de vida alienígena é inevitável. A maior parte são formas de vida animal e vegetal dos ecossistemas originais dos planetas colonizados (que o são apenas após a certeza de que nenhum elemento do ecossistema é danoso à espécie humana), mas a expansão colocou a humanidade em contacto com espécies alienígenas sentientes. Os misteriosos e pouco coerentes Silfen foram a primeira espécie alienígena encontrada. Estas criaturas assemelham-se à nossa visão dos elfos, pelo menos até abrirem a boca e reveleram fieiras de dentes ponteagudos. Os Silfen espalharam-se de forma sardónica pela galaxia, sem aparentemente necessitarem de tecnologia. Quando questionados, afirmam sempre que caminham por entre os caminhos entre os planetas, o que é assumido como uma forma superior da tecnologia dos buracos de verme. Nos planetas colonizados pelos Silfen só as mais simples tecnologias modernas conseguem funcionar, à excepção dos portais, que os Silfen permitem que funcionem normalmente. Diz-se que os caminhos que atravessam o universo levam a destinos inimagináveis, e que alguns até cruzam a própria Terra. Alguns humanos, num espírito profundamente hippie, fazem da sua vida uma busca pelos caminhos entre mundos, mas nenhum regressa. A nave espacial inteligente High Angel é a outra grande forma de vida que contacta com a humanidade. A High Angel é uma nave de dimensões gigantescas que aceita ser colonizada por espécies alienígenas para as estudar. A nave não se recorda, ou não divulga, quem foi o seu criador. Três dos gigantescos domos da nave são colonizados por humanos, estando as outras habitadas por outras espécies que não entraram em contacto com a humanidade, à excepção dos Raiel, uma espécie assemelhada a gigantescos polvos que observa com alguma curiosidade a humanidade.

Duas das espécies alienígenas não são precisamente alienígenas. Um grupo de humanos optou por utilizar a engenharia genética levando-a ao extremo, ao ponto de evoluir para lá da humanidade. Hamilton chamou a esta espécie os Barsoomians, nome que homenageia as aventuras marcianas de Edgar Rice Burroughs. A outra entidade é o culminar de séculos de evolução da inteligência artificial. A SI, Sentient Intelligence, é um agregado de inteligências artificiais e bancos de memória humana que ocupa um planeta só seu, e que aparentemente demonstra pouco interesse na civilização dos seus criadores, embora na hora mais crítica intervenha, num pormenor verdadeiramente deus ex machina, para salvar a humanidade. Literalmente.

A tecnologia subjacente à vida na comunidade é uma inteligente mescla de tecnologias futuristas e tecnologias que nos são bem conhecidas, o que é um toque genial da parte do autor. Os portais são controlados por avançada inteligências restritas, pois uma inteligência artificial prefere passar o seu tempo em busca do sentido da vida em vez de controlar com total precisão os portais no espaço-tempo. O poder computacional é imenso e ubíquo. Todos os habitantes têm implantes que lhes permitem estar em contacto permanente com a unisfera, o culminar evolutivo do ciberespaço e da internet. A fácil acessibilidade a enormes bancos de memória minitarizados permite às pessoas manter sempre consigo um implante que regista todas as suas memórias. Este implante, conjugado com tecnologias de retardamento de envelhecimento e de clonagem, permite à humanidade viver num estado de virtual humanidade. O rejuvenescimento clínico é um processo rotineiro, e a aniquilação física é impossível. Se alguém morrer, tudo o que se faz é gerar um clone seu, que é implantado com as suas memórias guardadas. Este pormenor levanta enormes questões sobre a consciência de nós próprios, sobre a própria humanidade: existirá alma? Somos apenas as nossas memórias? Serão os nossos corpos meros artefactos biomecânicos fácilmente descartáveis? Hamilton não entra por estes campos, preferindo apresentar esta imortalidade humana como algo de casual e perfeitamente natural.

A pujante economia interplanetária depende da rede de portais que sustenta vias férreas de comunicação controlada pela CST, a corporação interplanetária que detém os buracos de verme. Leram bem. No universo de Hamilton, a viagem entre planetas é feita de comboio, ignorando as vastidões interestelares e tornando as viagens interplanetárias um pouco como viagens rotineiras entre subúrbios. As tecnologias do dia a dia oscilam entre o avançadíssimo e o corriqueiro - a abundância de recursos e as diferentes políticas ambientais fazem com que ao lado de carros electricos coexistam fiáveis motores diesel. Entre alguns planetas menos desenvolvidos, a ligação ferroviária é feira a vapor...

Políticamente, a comunidade é uma democracia interplanetária, com dois centros de poder: na Terra, onde se situa o senado que legisla, e em New Costa, onde se situa o palácio presidencial. No entanto, a vida política é dominada pelas grandes dinastias, gigantescas famílias ligadas às primeiras colonizações e que, por isso, são donas de riquezas imensas. A comparação possível é com uma mescla entre senhores feudais e as modernas multinacionais. As grandes dinastias, através de vastas multidões empresariais, comandam os recursos da comunidade.

(Já perderam o fôlego? Esperem, que ainda vem mais.)

É neste detalhado diorama que se desenvolvem os vários enredos que constituem Pandora's Star. O principal enredo envolve um mistério. Num dos mundos mais afastados da Terra, Dudley Bose, um apagado astrónomo, descobre um mistério estelar: um sistema estelar binário encerrado dentro de duas esferas de Dyson. Como referência, as esferas de Dyson são um artefacto tecnológico imaginado pelo físico Freeman Dyson - gigantescas esferas que rodeariam uma estrela, permitindo à civilização que as construiu aproveitar todos os recursos energéticos estelares. O mistério das estrelas de Dyson está em quem as construiu, e o que é que contéem. Em busca de respostas, a comunidade envia a primeira missão espacial em três séculos. Uma pequena modificação à tecnolgia dos buracos verme permite a criação de naves espaciais que viajam para além da velocidade da luz. A nave Second Chance viaja até às estrelas de Dyson, comandada por Wilson Kime. Este é um antigo astronauta da NASA que havia tido a honra de participar na primeira missão tripulada a Marte, para desembarcar no planeta vermelho, nunca pisado por pés humanos, e... dar de caras com Nigel Sheldon e Ozzie Fernandez, os físicos que aperfeiçoaram os buracos de verme. Kime nunca esqueceu a humilhação, e é uma raridade, um partidário das viagens espaciais tripuladas numa era de outras maravilhas.

Nigel Sheldon, um dos criadores da tecnologia que permitiu à humanidade espalhar-se pela galáxia, é um homem poderoso, senhor da mais importante dinastia intersolar, e coloca os seus vastos recursos e o seu considerável poder político ao serviço do esclarecimento do mistério das esferas de Dyson. O seu amigo e colega Ozzie Fernandez, iconoclasta e de espírito independente, opta por outra direcção. Abandona a sua vida errante e luxuosa e parte em busca dos Silfen, caminhando nos caminhos por entre os planetas em busca da resposta aos mistérios das esferas de Dyson.

Noutro sub-enredo, Paula Myo é uma mulher genéticamente modificada para ser uma super-polícia. Em cento e cinquenta anos de serviço, Myo resolveu todos os seus casos, menos um: o de Bradley Johanson, cabecilha de uma organização terrorista que pretende livrar a humanidade da influência do Starflyer, uma entidade alienígena que secretamente influencia os destinos da humanidade. Johanson conta com a inestimável ajuda de Adam Elvin, possívelmente o último socialista do universo, e mestre da decepção, capaz de fazer chegar a Far Away, planeta onde se encontra o artefacto alienígena de onde o Starflyer origina, as armas que sustentam uma sangrenta guerrilha contra a instituição que estuda o artefacto, da qual Bradley Johanson foi presidente. Myo nunca consegue apanhar Johanson, ou Elvin, e suspeita de que elementos poderosos na administração da comunidade o estão a ajudar.

Kazimir McForster é um dos guerrilheiros de Far Away, escolhido pelo seu valor para servir de agente infiltrado na comunidade. Kazimir apaixona-se por Justine Burnelli, filha directa do chefe de uma das mais poderosas famílias intersolares. Os Burnelli controlam vastos recursos e o seu pai é um verdadeiro cappo di tutti cappi. O livro inclui uma detalhada cena de casamento, em que dois herdeiros júniores de duas famílias dinásticas se casam enquanto o pai Burnelli realiza inúmeros negócios nos bastidores - um pormenor reminiscente de O Padrinho. A morte de Kazimir no decurso de uma operação policial a que Justine assiste revela que a entidade Starflyer não é o mito imaginário que se julgava.

Mellanie Rescorai é um vítima acidental de uma investigação de Paula Myo. Mellanie é uma rapariga atraente que tudo deixa ao se apaixonar por um poderoso financeiro do seu planeta de origem. Mas a riqueza deste financeiro havia sido adquirida através de um elaboradíssimo esquema que envolveu o assassínio da sua mulher e do seu amante, um esquema tão bem montado que apenas um único pormenor apercebido por Paula Myo o consegue desmacarar. Tendo perdido tudo, Mellanie estabelece uma aliança com a SI, tornando-se uma agente da entidade cibernética na comunidade humana.

A chegada da Second Chance à órbita do sistema de Dyson revela inadvertidamente um dos segredos: as barreiras de Dyson desvanecem-se, revelando uma agressiva civilização que limitada pelas esferas que a continham se espalhou pelo seu sistema solar. Violentamente atacada, a Second Chance regressa ao espaço da comunidade, tendo deixado para trás dois tripulantes, um dos quais era Dudley Bose, o descobridor das esferas de Dyson. Ao tomar conhecimento da ameaça desconhecida, a comunidade apressa-se a tomar medidas defensivas, mas estas não são as suficientes para travar o ataque alienígena que se sucede.

Os alienígenas do sistema de Dyson, os Prime, são possívelmente o mais interessante voo de imaginação de Peter Hamilton. Os habitantes constituem uma única inteligência-colmeia, cujos elementos sentientes são imóveis que controlam autómatos biológicos. O único imperativo das entidades alienígenas é a sobrevivência através da absorção dos territórios de outros elementos sentientes, bem como do poder biocompuatcional dos elementos sentientes subjugados. MorningLightMountain é o mais poderoso dos primes. A sua hegemonia estende-se a todo o sistema, tendo absorvido todos os restantes primes. Ao contactar com os elementos abandonados da tripulação da Second Chance, MorningLightMountain descobre todo um novo espaço desejável, completo com recursos planetários e tecnologia que pode absorver na sua inexorável expansão. MorningLightPrime, condicionado pelo imperativo que domina a sua espécie, pretende expandir-se por todo o universo, assegurando assim a sua sobrevivência. Lança assim sobre o espaço da comunidade uma avassaladora invasão, sustida muito a custo pelas defesas planetárias, pela diminuta frota de combate espacial e pela intervenção da SI.

Fica no ar o mistério: quem terá construído as esferas de Dyson para conter os Primes, e quem é que derrubou as barreiras? Suspeita-se que a entidade Starflyer é um prime extraviado, que utiliza a comunidade humana como recurso para se opôr ao seu companheiro mais poderoso. Mas para a conclusão da saga, com o revelar de todos os mistérios, há que ler Judas Unchained.

Esta longa resenha é apenas um pálido reflexo da complexidade de Pandora's Star. Muito ficou por abordar, pois esta é uma obra de enorme complexidade. Os vários enredos giram à volta uns dos outros, gerando outros enredos, e só no momento certo nos apercebemos o que é que uns têm a ver com os outros. Embora o volume da obra muitas vezes nos faça perder o sentido às personagens, Peter Hamilton consegue urdir uma potente teia que nos leva a criar empatia com os seus destinos. E o complexo universo criado por Peter Hamilton, do qual deixei aqui uns laivos (há muito, mas muito mais para descobrir no livro) é um voo imaginário de puro fascínio. Pandora's Star é uma space opera empolgante e apaixonante.