sexta-feira, 4 de agosto de 2006
Vathek
Jean-Dominque Ingres - A Odalisca e o Escravo
Vathek 2ª Variação (mp3 192kbps)
Vathek 2ª Variação (mp3 192kbps)
Luís de Freitas Branco
Wikipédia | Luís de Freitas Branco
Wikipedia | Vathek
William Beckford, escritor inglês contemporâneo de Shelley, homossexual convicto e amante de viagens por Sintra escreveu em 18xx a obra The History of the Caliph Vathek. Inspirado nos contos das Mil e Uma Noites, recentemente introduzidos a um gosto europeu sedento de exotismo, Vathek retrata a decadência de um imaginário Califa das arábias, que descura o seu povo e a sua alma numa eterna busca de prazeres sensuais e sabedoria sem que termina às mãos de Iblis, demónio castigador. Profundamente irreal, Vathek é uma desculpa para imaginar e retratar os prazeres sensuais e eróticos proibidos pelo decoro da sociedade contemporânea, com a ressalva moralizante de que a busca de prazer e a procura do conhecimento ilimitado são puníveis com a melancolia da ambição esmagada. Luxuriante de exotismo, Vathek aponta para uma visão do oriente mítico que pouco se coaduna com a realidade, visão essa que ainda hoje influencia a nossa percepção do oriente, tida como terra mítica de sonhos exóticos, odaliscas sensuais e palácios luxuriosos que se levantam em espiras e cúpulas em direcção ao céu quente dos desertos.
Luís de Freitas Branco (1890 - 1955) é considerado um dos mais importantes e influentes compositores portugueses do século XX. De acordo com o maestro e compositor Fernando Lopes-Graça, a Luís de Freitas Branco "se ficou devendo, sem constatação, o renovamento da nossa música quando por volta de 1910 introduz em Portugal o Modernismo, tal como, à data, este se achava definido pelo impressionismo de Debussy e as experiências atonais de Schonberg". Inspirado na obra homónima de Beckford, Luís de Freitas Branco compôs Vathek, Poema Sinfónico, que interpreta de forma muito pessoal o exotismo orientalista da obra. Sem querer transpor toda a obra para música, o compositor optou por evocar os palácios de prazer onde o califa excitava os seus sentidos. Partindo de um tema árabe, Luís de Freitas branco introduz variações orquestrais que se concretizam nas cinco variações precedidas por um toque de introdução e um tema e prólogo e finalizadas com um epílogo.
Mas, que percebo eu de história da música - muito menos da história da música portuguesa, para me atrever a tais afirmações? Descobri a obra de Luís de Freitas Branco graças a transmissões de concertos do quinquagésimo aniversário do seu falecimento na Antena 2 (bendito serviço público que muitos querem ver aniquilado), e descobri assim a obra pujante de um compositor que estava a ficar esquecido e do qual eu vergonhosamente nem sequer tinha a noção de que existia. Fui assim introduzido a uma obra que me pareceu simultâneamente clássica e moderna, com a suavidade melódica das composições da época romântica e a intensidade experimentalista que caracteriza os primórdios da música moderna, que antecedeu a libertação melódica e rítmica da música contemporânea, cujas composições por vezes necessitam de ouvidos muito bem treinados para serem entendidas como música. O Ministério da Cultura editou em 1988 (nos tempos em que ainda era uma secretaria de estado) a obra completa de Luís de Freitas Branco, re-editada em CD pela Strauss (uma editora que creio já ter desaparecido) em 1997. Estes discos podem ser encontrados com um vasculhar atento numa discoteca com uma boa secção de música clássica. Vathek atingiu-me com a poesia suave de um romantismo exótico com toques apaixonantes de um modernismo quase dissonante, sem nunca perder de vista a sensualidade inerente ao tema da obra. Para audição, deixo-vos a apaixonante Segunda Variação, o "tempo da melodia" ou "néctar da alma", o palácio da música do califa.
Os textos específicos ao compositor foram retirados às notas que acompanham o CD Vathek / Suite Alentejana Nº 2, editado pela Strauss em conjunto com a Secretaria de Estado da Cultura no âmbito do projecto discográfico Portugalsom em 1997. A gravação, efectuada em Budapeste, conta com os músicos da Orquestra Filármónica de Budapeste sob direcção do maestro András Kórodi na interpretação da obra do compositor. Quanto ao mp3 disponibilizado, deixo-o com um toque "fairusista" - em nome da divulgação de uma obra que não deve cair no esquecimento, ou limitar-se à audição por élites conhecedoras.