terça-feira, 29 de agosto de 2006

O Cruzeiro dos Esquecidos

Photobucket - Video and Image Hosting

Wikipedia | Enki Bilal

O desaparecimento do mercado da Meribérica/Liber, editora especializada em banda desenhada, trouxe consigo coisas boas e coisas más. O mau está no o desaparecimento da editora cujo nome simboliza banda desenhada em portugal, da editora que introduziu aos portugueses Moebius e Bilal e durante anos editou a única revista de banda desenhada em português destinada ao grande público - a Selecção BD. O panorama bedéfilo português perdeu uma das suas referências. O bom está nas livrarias e outros locais que vendem livros ao lado de produtos higiénicos e comida congelada que se querem livrar dos livros da Meribérica que lhes enchem as prateleiras e os colocam à venda a preços cada vez mais simbólicos. Encontrei há poucos dias num hipermercado aqui da zona pilhas literais de livros de banda desenhada, perfeito para adquirir obras já classicas como Corto Maltese ou Tenente Blueberry, introduzindo os mais incautos nestes personagens, ou permitindo continuar colecções. Ou, no caso de contas bancárias em estado permanente de saúde periclitante (como a minha), perfeito para suspirar.

Enki Bilal é um dos grandes mestres da Banda Desenhada europeia. De origem Sérvia, Bilal tem desenvolvido o seu trabalho em França, paraíso editorial da BD europeia. O seu estilo gráfico muito pessoal e as suas visões surreais legaram obras como a Trilogia Nikopol, iniciada com a fabulosa obra A Feira dos Imortais, ou a tetralogia Hatzfeld, da qual já estão publicados em português os dois primeiros tomos, O Sono do Monstro e 32 de Dezembro. O trabalho de Bilal também passa pelo cinema, nomeadamente com o recente Imortel, filme em CGI que peca apenas por uma certa imobilidade das figuras animadas.

O Cruzeiro dos Esquecidos, publicado em 1975, marca o início da colaboração de Bilal com o argumentista Pierre Christin, uma colaboração que gerou a obra maior que é A Caçada. O Cruzeiro dos Esquecidos é uma história surreal sobre uma aldeia que, vítima de forças para além da sua compreensão, se descobre arrancada da terra, voando em direcção ao mar. Os esquecidos são os aldeãos, que sempre viveram esquecidos pelos poderes maiores, e que vêem os seus modos de vida ameaçados por uma industrialização selvagem e pela rapacidade dos empreendedores turísticos - enfim, pelo que se convencionou chamar de "desenvolvimento". O mistério do voo da aldeia deve-se à interferência de um misterioso personagem, envolvido desde longa data com feitiçarias e movimentos esquerdistas radicais, que manipula uma experiência militar com forças anti-gravitacionais.

Trinta anos após a sua publicação, esta obra vale mais pelo seu referêncial histórico na BD, como precursora do trabalho que Bilal viria a desenvolver. Neste livro, os elementos gráficos que caracterizam o estilo de Bilal já estão presentes, de forma embrionária, permitindo em retrospectiva antever a beleza das suas obras futuras. A temática da obra, com uma forte componente de luta contra um progresso que destroi o modus vivendi natural, simbolizado pelas manigâncias de militares empedernidos cuja sede de poder ultrapassa os limites da natureza, também já perdeu alguma actualidade. Apesar de tudo, o tom jocoso da história, que representa o poder político como totalmente ineficaz e o poder militar como tão monstruoso que os militares envolvidos nas experiências que deixam a aledia a voar se vão metamorfoseando progressivamente em monstros, não está totalmente desadequado aos nossos tempos contemporâneos. É de assinalar o surrealismo da história e das imagens, que apesar de datada, ainda nos faz pensar na estultícia dos poderes que tentam modificar o nosso mundo em nome de um desenvolvimento assente no mero lucro.

Esta vai direitinha para os meus poeirentos, amarelecidos e amados arquivos.

(Como aparte, devo dizer que esta história, no seu elemento fulcral de aldeia a vogar ao sabor do vento, não deixa de me fazer lembrar qualquer coisa, às voltas com jangadas de pedra e autores premiados com prémios Nobel. Mas não liguem. Foi um mero fiapo de pensamento.)