terça-feira, 29 de novembro de 2005
Ad Vitam
Imortal Ad Vitam (2004), realizado por Enki Bilal
IMDB | Immortal Ad Vitam
Wikipedia | Imortel Ad Vitam
Wikipedia | Enki Bilal
Bibliografia de Bilal
Escritos e desenhados entre meados dos anos oitenta e princípios dos anos noventa, os três livros que formam a Trilogia Nikopol estabeleceram o jugo-eslavo Enki Bilal como um nome de referência no mundo da banda desenhadada francesa. A Feira dos Imortais, A Mulher Armadilha e Frio Equador surpreenderam, quer pela qualidade gráfica, num registo estilístico muito pessoal que se desenquadra das convenções clássicas da banda desenhada francófona, quer pela qualidade do argumento. Toda a história se desenrola numa europa futura, profundamente distópica, em que astronautas em hibernação caem do céu, deuses egípcios viajam pelo espaço nas suas pirâmides, a política é uma confusão difusa, extraterretres caem, inexplicávelmente, na terra, e a noção de nacionalidade se dissolveu em cidades-estado, verdadeiras megalópoles controladas por governos fascistas, comunistas ou eugenistas. É por este mundo caótico que Hórus, antigo deus egípcio fascinado pela humanidade, Alcide Nikopol, ex-astronauta caído na terra após trinta anos de hibernação e Jill Bioskop, mulher de cabelo azul brilhante e pele impecávelmente branca, entretecem as suas histórias de rebeldia, deriva e perda de memória.
Se a trilogia Nikopol fornece as personagens e a inspiração de Imortal Ad Vitam, as semelhanças terminam aqui. A acção passa a desenrolar-se numa distópica Nova Yorque (essa cidade-fétiche) em 2092, durante sete dias, os últimos sete dias da vida de Hórus, deus condenado à morte pelos seus pares após uma tentativa falhada de rebelião. Hórus tem apenas um objectivo - procriar, deixar descendência, e para isso precisa de um corpo humano que o acolha. Após várias tentativas falhadas (um falhanço bastante sangrento, diga-se de passagem), encontra o corpo compatível de Nikopol, um dissidente político condenado a trinta anos de hibernação numa prisão orbital, libertado acidentalmente um ano antes do fim da sua pena. Agora, só lhe resta encontrar a mulher... para isso, Hórus precisa de encontra uma anomalia, uma mulher que seja capaz de procriar com um deus - uma perfeita raridade, que apenas surge muito por acaso algumas vezes em locais imprevistos do universo. Essa anomalia é personificada em Jill, uma estranha mulher de cabelo azul e pele impecávelmente branca cuja biologia tem três meses mas aparenta vinte anos de idade.
A história complica-se - Nova Yorque é uma verdadeira cidade-estado, governada por um concelho de eugenistas apostados em manter a pureza biológica de uma humanidade contaminada por extra-terrestres, mutações genéticas e bio-engenharia. O verdadeiro poder na cidade é detido por uma empresa de pesquisa genética, que dispõe a seu prazer das vidas dos cidadãos, especialmente daqueles de nível inferior. No centro de Nova Yorque, ergue-se a anomalia de Central Park, uma zona anómala, protegida por um campo de forças, onde ninguém consegue entrar e regressar com vida. Essa anomalia é um estranho nexo cósmico, de onde provém Jonh - a eternamente coberta personagem que cataliza as vidas de Nikopol, Jill e Hórus.
Sobre a cidade, flutuando misteriosamente, a pirâmide-nave espacial que alberga os deuses egípcios que, pacientemente, esperam que se cumpram os sete dias de vida que restam a Hórus.
Visualmente, o filme é fascinante. Toda a cidade, todos os cenários e grande parte dos personagens são integralmente digitais. Imortal Ad Vitam é um dos primeiros filmes a dar primazia aos efeitos especiais digitais sobre os efeitos clássicos, e isso nota-se. Sem os recursos imperiais dos estúdios de cimena americanos por detrás, a realidade virtual que é o filme tem muito de virtual e pouco de real. As imagens são demasiado limpas (o sinal óbvio de que foram criadas num disco rígido) e as personagens virtuais são quase realistas nos seus movimentos, assemelhando-se muito ao que podemos ver nos jogos de computador mais avançados gráficamente. Apesar disto, o filme aguenta-se. O nome de Bilal é o suficiente para esperarmos um visual estranho, quase de banda desenhada, o que se adequa à limpeza dos cenários digitais do filme. E os cenários são, simplesmente, fabulosos.
O filme foi editado directamente em DVD em Portugal. Porquê? O filme é uma heresia - um filme de ficção científica francês, com efeitos especiais digitais. Os cinemas que até passam filmes conotados com ficção científica não lhe tocaram, pois é francês e isso viola os contratos que têm com as empresas produtoras de cinema americano (ou julgavam que as grandes cadeias de cinemas escolhem os filmes que exibem) que nos echem os ecrãs (cada vez menos) com uma dieta de fast food cinematográfico que se dedica a reciclar conceitos interessantes para tentar dar brilho a filmes que são essencialmente filmes de pancadaria assistida por efeitos especiais. Os cinemas que habitualmente passam cinema francês também não lhe tocaram. Ficção científica? Sacré Bleu! Isso não é suficientemente sério para um King ou um Nimas, a menos que já tenha trinta anos e se tenha tornado filme de culto, como o 2001. Imortal Ad Vitam não se enquadra na noção tradicional de cinema francês de autor, mas é sempre bom relembrar que alguns conceituados realizadores franceses realizaram belíssimas obras de cinema de ficção científica, o que pode ser comprovado por quem já viu Playtime de Jacques Tati, Alphaville de Godard ou Fahrenheit 451 de François Truffaut.
Imortal Ad Vitam é um filme que recomendo vivamente. Apesar das suas falhas, é um filme fascinante que vai baralhar os neurónios de quem o visualizar - antídoto perfeito para a sacarina e banal cultura mediática que se tenta entranhar nas nossas mentes.
Como diriam os utilizadores de uns computadores que eu cá sei, Think Different!