sexta-feira, 11 de agosto de 2006

Na Estrada

Durante uma viagem recente pelos lados de Sintra o meu olhar foi atraído por um cartaz que anunciava uma representação do Hamlet de William Shakespeare. A atenção dispensada à condução impediu-me de perceber onde era a representação, e por qual companhia de teatro; mas conduzir um automóvel, apesar de todas as agruras e da necessidade de estar alerta a todos os estímulos, é por vezes um momento muito propício a reflexões que vagueiam através dos nossos pensamentos, tal como o veículo deambula pela estrada. Estas reflexões são um dos prazeres da condução, especialmente quando não termina com um abraço de metal e plásticos contra qualquer obstáculo na estrada - como uma àrvore incauta ou um peão mais atrevido. Atravessar Sintra de carro é uma delícia. A mente vai-se recordando de pormenores sinfónicos da época romântica, pedaços de textos a aproximarem-se do gótico, fragmentos revivalistas de visões neomanuelinas e pinturas históricas com tágides desnudas a saudar os heróis. A menção a Hamlet recordou-me as palavras do bardo de Stratford-Upon-Avon que Neil Gaiman tantas vezes homenageou nas histórias do Sandman.

Não consegui deixar de pensar em Píramo e Tisbe. Na antiga Babilónia onde Semiramis reinava, Píramo e Tisbe eram filhos de duas famílias rivais. As suas casas ficavam ao lado uma da outra, e apenas uma parede e a inquebrável rivalidade das suas famílias os separava. As agruras aguçam os amores, e uma curta racha era o suficiente para os dois apaixonados trocarem suspiros e juras de amor. Cansados de suspirar por um amor proibido, os dois apaixonados decidem fugir. Entre sussurros, combinam abandonar as suas famílias e marcam a sua tão desejada reunião num túmulo abandonado que ficava já fora das portas da cidade. Tisbe foi a primeira a chegar ao túmulo. Aguardando na noite escura, ocultada por uma amoreira branca, é surpreendida por um leão que se passeia por entre as ruínas iluminadas pela fria luz da lua. Assustada, esconde-se por entre as sombras, mas na fuga perde o seu manto, que o leão pisoteia com as suas patas ensanguentadas. Píramo, ao chegar ao túmulo, inquieta-se por não ver a sua amada Tisbe. Ansioso, procura-a por entre as trevas, e acaba por encontrar o manto ensanguentado junto à amoreira. Temendo o pior, Píramo desespera. Enlouquecido, pensando que Tisbe jazia morta, Píramo decide unir-se a Tisbe no além, e enterrou a sua espada no seu coração. O seu sangue jorra e ensopa as raízes da amoreira. Tisbe regressa ao túmulo e depara com Píramo moribundo, caído sobre o seu manto ensanguentado. Num relance, compreende tudo. Arranca a espada do corpo de Píramo e enterra-a no seu seio, pedindo à amoreira que sirva de testemunho do tão trágico amor. Os dois amantes uniram-se, enfim, na morte. As suas famílias desavindas respeitaram os seus desejos. Os amantes repousaram juntos no túmulo, e até hoje a amoreira dá frutos vermelhos, em memória do sangue derramado pelos amantes.

Soa a qualquer coisa bem conhecida, não soa? Troquem Babilónia por Veneza, as famílias babilónicas pelos Capuletos e pelos Montecchios, a antiguidade pelo renascimento e o leão pela peste. A lenda de Píramo e Tisbe foi a semente da mais admirada obra de Shakespeare, Romeu e Julieta. Não se trata de uma cópia; trata-se antes da recriação de um mito que nos acompanha desde os tempos mais remotos.

Há tempos atrás surgiu uma interessante tese de cujo autor não me recordo. A tese sustentava que toda a ficção assentava em seis temas basilares - pelo menos, creio que eram seis. Como memes, como arquétipos, esses temas fizeram surgir toda a nossa ficção, os contos tradicionais, a poesia homérica, as narrativas ficcionadas dos romances, do cinema e de tudo aquilo que nos entretém. Homem encontra mulher é um desses temas basilares, mesmo que a conheça no sentido bíblico, ou não. Outro desses grandes temas é a viagem de descoberta, ilustrada por narrativas imortais como a Argonautica ou Coração das Trevas. Infelizmente não me recordo dos restantes temas. Mas o que me fascina é saber que gravado no nosso cérebro se encontram grandes ideias arquetípicas, que a nossa imaginação necessita de transmutar nas histórias que adoramos contar e ouvir. A raiz das histórias que contamos é a nossa raíz. Não somos capazes de a esquecer, nem o queremos. Há verdades que o são desde os tempos primordiais, que a nossa natureza não deixa desvanecer.

(O que faria eu sem a minha cópia da Mitologia de Bulfinch?)