sábado, 19 de agosto de 2006

Dune

Photobucket - Video and Image Hosting

IMDB | Dune
Dune
Dune: Behind the Scenes


Como campo literário, a Ficção Científica é vibrante, cheia de novas ideias. Não é muito difícil encontrar boas obras de ficção científica, inovadoras e inteligentes, desde as mais clássicas ao que de mais recente se publica. É por isso para mim um mistério observar como a FC se transpõe tão mal para outro campo de expressão artística - o cinema, cuja peculiar simbiose entre imagem e texto poderia gerar obras memoráveis. Estranhamente, isso não acontece. Bons filmes de ficção científica contam-se, talvez, pelos dedos das mãos. Para o cinema, a FC é um adereço para decorar as eternas histórias de amor ou aventura projectadas nas trevas das salas de cinema. Culpa disso pertence em parte aos filmes da série Star Wars, que para o grande público são sinónimo de ficção científica. A partir da bitola dos sabres de laser e dos imperadores galácticos malévolos torna-se difícil apontar que a FC é um pouco mais do que isso. Alías, é bastante mais do que isso... filmes como 2001, Alphaville, o velhinho Metropolis ou o estranho Donnie Darko estão muito mais por dentro dos cânones da Fc do que a omnipresente guerra das estrelas ou os inúmeros filmes de pancadaria/paixão/aventura/simples desperdícios de celulóide que andam às voltas com naves espaciais, robots, cyborgs e tanta outra da parafrenália decorativa que se associa à FC.

Não é que não goste da Guerra das Estrelas. São belíssimos filmes de aventuras exóticas, revivalistas e fascinantes. Mas há mais para além deles. Poderia haver mais. Mas isso é um mal comum ao cinema, género artístico em que alguns se podem dar ao luxo de ser mestres, e os outros têm de se sujeitar às implacáveis leis do mercado. Filmes como a trilogia Rouge - Blanc - Bleu de Kieslowski são muito mais interessantes e profundos do que qualquer grande sucesso delicodoce made in hollywood, isto só dando um exemplo, mas vejam lá o que é que é promovido e o que é que bate recordes de bilheteira. Enfim, as artes sempre sofreram com as venalidades, e a guerra entre o bom gosto e o gosto comum, legítima ou não, já dura desde que o homem faz arte. E muito tempo há de durar, e felizmente que assim é; faz parte da inquietude do espírito humano. A imposição de gostos traz sempre maus resultados.

Serve esta longa introdução para falar um pouco daquele que é um dos mais estranhos filmes de ficção científica de sempre, e que na minha nem sempre muito humilde opinião pertence ao panteão dos bons filmes de ficção científica, merecendo bem o seu lugar ao lado do 2001 e dos outros suspeitos do costume.

As incongruências deste filme começam logo pelo realizador. David Lynch, realizador de obsessivos filmes de culto, não é exactamente o realizador que se espera encontrar numa space opera épica. Depois, a obra em que se baseia o filme é um gigantesco diorama que dificilmente se presta a uma condensação de duas horas e meia de filme. Apesar disto, Dune é um dos mais interessantes filmes de ficção científica de todos os tempos.

O toque obsessivo de Lynch vê-se nos pequenos detalhes que dão a textura ao filme. Os sons industriais, hipnotizantes, que Lynch já usara com excelentes efeitos em Eraserhead e O Homem Elefante conjugam-se com as estranhas visões tão típicas das obsessões de Lynch. Sendo o filme uma space opera pura, Lynch leva os seus actores a excessos verdadeiramente operáticos. O actor que representa o papel de Barão Harkkonen ultrapassa todos os limites do exagero, e surpreendentemente, a coisa resulta. Kyle McLachlan, actor-fetiche de David Lynch, resume a sua actuação no papel principal de Paul Atreides a um passeio com ar trágico e imponente. Supreendentemente, resulta, transmitindo ao personagem o ar messiânico que o caracteriza. Outra actuação memorável é a de Sting, que ganha certamente um lugar na galeria das piores actuações na história do cinema com a sua representação de Feyd.

Sem querer ou sem poder adaptar fielmente a obra homónima de Frank Herbert, David Lynch acentuou os aspectos mais místicos de Dune. No seu original, Dune é uma obra de intrigas políticas intercaladas com explosões de violência à escala planetaria. Mas na intepretação cinematográfica, os aspectos políticos limitam-se à manipulação imperial do conflito entre as duas casas, rápidamente arrumada até à conclusão do filme. O aspecto que é valorizado é o aspecto messiânico. Os Fremen, originalmente o povo livre das dunas, são no filme os zelotas que velam e se sacrificam pelas lendas de um messias que virá para os conduzir à vitória. E é aqui que reside o grande valor deste filme. A mitologia do filme não é a mitologia clássica anglo-saxónica dos hérois que cumprem o seu destino. O filme debruça-se no seu oposto, na mitologia dos sagrados mistérios femininos, que nos é tão familiar como mediterrânicos embrenhados na longa história dos mistérios de ísis, nos ritos de elêusis ou na lenda da virgem maria. O messianismo de Paul Atreides é propiciado e manipulado pelos sagrados mistérios dos conhecimentos ocultos da irmandade das Bene Gesserit, feiticeiras sagradas, vestais eternamente vestidas de negro que transmitem os seus saberes de vida em vida.

Neste cenário de mitos e mistério, os elementos clássicos da space opera são menosprezados. As épicas batalhas resumem-se a curtas vinhetas que recordam a pintura histórica do século XIX. Em vez de violentas cenas de acção, temos detalhes que parecem saídos de algum quadro marcial de Gericault ou David. Os momentos verdadeiramente decisivos são muito intimistas, ancorando-se mais nas reflexões dos personagens do que nas suas acções. Esta pouca importância dada à acção contribuiu para o descrédito a que o filme foi votado por um público sedento de variações sobre as guerras nas estrelas. Para ajudar ao descrédito, os cenários são apropriadamente decadentes, mostrando um mundo com mais elementos em comum com os orientalismos do século XVIII do que com as visões ultra-futuristas tão favorecidas pela ficção científica.

Filme desprezado na época em que estreou,Dune transformou-se num clássico do cinema de ficção científica. Se a adaptação tivesse sido mais fiel à obra literária, talvez o filme tivesse sido esquecido, ou então ganho uma legião de fãs como a que se reúne à volta do Star Trek. Mas a visão única de David Lynch, com as suas obsessivas alucinações audio-visuais e o seu olhar sobre mistérios míticos deu ao filme uma dimensão intemporal.