terça-feira, 30 de maio de 2006

Dune

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Wikipédia | Frank Herbert
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Star Wars Origins | Dune
Islamic and Arabic themes in Frank Herbert's "Dune"


Normalmente, a literatura de ficção científica segue pressupostos bem definidos. À partida, pelo autor e pela obra, sabemos em que sub-género se enquadra. Se a obra falar muito sobre realidades virtuais e as proezas de super hackers, já sabemos que estamos perante uma obra cyberpunk. Se, por outro lado, versar sobre ruínas e mutações genéticas, sabemos que estamos perante ficção pós-apocalíptica. Se a obra for um gigantesco diorama cheio de naves espaciais e estranhas aventuras em galáxias distantes, não há que enganar: é uma space opera. Mesmo dentro de cada sub-género, os autores geralmente obedecem às convenções dos sub-géneros, o que é o argumento utilizado pelos amantes da grande literatura para desprezarem as obras de FC.

Algumas obras há que conseguem virar tudo do avesso. São quase inclassificáveis, não parecem pertencer a nenhum género específico, e nem por isso deixam de ser fascinantes. Dune, escrito em 1963 por Frank Herbert, pertence a este tipo de raras obras.

Dune surpreende porque é uma space opera virada do avesso. Tudo, em Dune, contradiz o cânone das space operas. Da tecnologia à mitologia, em tudo Dune inverte o esperado dentro do género literário.

Dune é uma parabola heróica sobre os perigos da liderança. Paul Atreides, filho do Duque Leto Atreides, vê-se isolado e abandonado na superfície de um planeta-deserto após a morte traiçoeira do seu pai. Tendo perdido tudo, Paul apenas tenta recuperar a sua honra e nome, mas ao fazê-lo vai acabar por se transformar num líder religioso e levar uma jihad aos confins do universo. Esta história aparentemente simples ganha vida através do detalhado universo imaginário criado por Frank Herbert. Fiel aos pressupostos da space opera, a acção de Dune situa-se num contexto de futuro profundo, em que a humanidade se espalhou de tal maneira pelo universo que o velho planeta terra não passa de uma memória desvanecida. O universo conhecido é regido por um imperador-padishah, que utiliza sublimemente a estratégia do dividir para reinar. Os principais e mais ricos planetas são autênticos feudos, atribuídos aos nobres representantes das grandes casas da nobreza, que se comportam como senhores feudais medievos. As lutas de poder são constantes, e o que equilibra o poder imperial são as legiões do imperador, as lendárias e invencíveis tropas Sardaukar, capazes de enfrentar todo o poderio militar dos feudos reunidos no Landsraad, uma espécie de parlamento. A violência bizantina do poder político é contrabalançada pelo poder absoluto da Guilda, uma organização que detém o monopólio das viagens espaciais, o único fio de ligação entre os distantes planetas do império. A Guilda não se importa com as lutas internas entre os feudos imperiais, e é quem na práctica decide quem se senta no trono do império. Se há um poder político e um poder real, há também um poder oculto, a irmandade das Bene Gesserit, uma poderosa organização mística que influencia os destinos do império com uma astuta política de selecção genética destinada a criar um super-homem, um ser mais do que humano capaz de controlar os poderes místicos que a organização não consegue controlar devido à sua femeninilidade. Fulcral para a manutenção do status-quo deste exótico império é a especiaria, uma substância que atrasa o envelhecimento, confere alguns poderes místicos e permite aos navegadores da Guilda navergarem pelo espaço. A especiaria é a pedra fundamental do mundo de Dune. Sem ela, todo o império não poderia existir.

Há só um local no universo onde se produz a especiaria: o planeta-deserto Arrakis, terra extrema onde a àgua é o mais precioso de todos os bens e onde os desertos onde se colhe a especiaria são habitados por criaturas perigosas, vermes gigantes capazes de um imenso poder destrutivo enquanto navegam pelos mares de areia. Arrakis é também o lar de um estranho povo, os Fremen, um povo condicionado ao deserto desde a mais tenra idade, que vive em perfeita sintonia com o seu ambiente mas que é considerado como um povo de selvagens pelos habitantes de outros planetas que vêm a Arrakis recolher e lucrar com a especiaria.

A Leto Atreides, pai de Paul, é dado o feudo de Arrakis num bizantino jogo de poder com a casa dos seus arqui-inimigos, os Harkonnen, liderados por um degenerado Barão cujo objectivo último é destronar o imperador e ocupar o trono imperial. Os Harkonnen representam tudo o que há de degenerado neste universo. Opressores e assassinos, pouco se preocupam com os povos que tutelam, e interessam-se apenas por lucros e sangrentos jogos de poder. Em perfeita oposição, os Atreides são aguerridos, mas justos e honrados. O ódio entre as duas casas dura há séculos, e o Barão Harkonnen manipula a atribuição do feudo de Arrakis como uma forma de aniquilar o seu grande rival. E chega a consegui-lo, através da mais baxa traição e do uso indiscriminado do seu poder militar aliado ao do imperador. A Casa Atreides é aniquilada, apenas restando alguns homens de confiançan dispersos pelo planeta, a mulher-concubina Bene Gessserit do duque e o seu filho Paul, legítimo herdeiro do selo do ducado. Estes encontram refúgio entre os Fremen, refúgio que é facilitado pelas lendas implantadas entre os Fremen por missionárias Bene Gesserit (eufemísticamente denominadas missionárias protectivas), que levam os Fremen a considerar Paul como um ser lendário, que viria do espaço para os libertar da sua escravidão e os conduzir à glória. Paul encarna na perfeição esse mito, pois ele é algo de especial - Paul é o produto, por acidente, de séculos de aperfeiçoamento genético Bene Gesserit, profundamente treinado pela sua mãe nas artes secretas e transformado num lutador perfeito pelas mãos dos fieis ajudantes do seu pai. Paul é mais do que humano, Paul é o kwisatch haderach sonhado pelas Bene Gesserit. Líder natural, Paul cataliza em si as lendas e desiquilibra o universo ao perceber a estreita relação entre os vermes de Arrakis e a especiaria, fundamental para toda a humanidade.

Dune é um livro fascinante, cheio de sub-textos e referências rebuscadas. Dune é para a ficção científica o que a Ilíada é para a literatura: uma fábula heróica sobre os perigos da confiança cega nos líderes, onde os elevados objectivos de honra e glória se revelam sempre como geradores de ruína e destruição. É esta a ideia mais explícita de Herbert - como as melhores intenções dos heróis são sempre desvirtuadas pelos acontecimentos. No momento do seu maior triunfo, Paul percebe que perdeu - não irá conseguir impedir os seus Fremen de se transformarem numa legião de fanáticos capazes de conquistar o universo em nome de um deus vivo. Uma ideia acutilante para um livro do século XX, o século das grandes personalidades que conduziram os seus países à ruína.

As referências contidas em Dune são imensas, e ultrapassam largamente o âmbito de um simples post. Mas há algumas que eu não resisto em deixar por aqui registadas, como forma de provar o brilhantismo da obra. Um execelente exemplo de metáfora em Dune é a especiaria - colhida no deserto, é fundamental para a sociedade humana, e a sua comercialização está entregue a um monopólio comercial, a companhia CHOAM. Sem a especiaria, as viagens espaciais não seriam possíveis, o que torna a metáfora visível - a especiaria é o petróleo, essencial à nossa sociedade e causa de tantas complicações. Indo mais longe, o autor compara a CHOAM à OPEP.

A tecnologia de Dune é estranhamente retrógrada. A expansão humana pelo universo, propiciada pela tecnologia, acabou por gerar revoltas contra a tecnologia. Os computadores - máquinas pensantes - são proíbidos. Em alternativa, existem os Mentats, seres humanos com um treino especial que os torna capazes de computação pura, e os navegadores da Guilda, que navegam através do espaço-tempo sem necessitarem de computação graças às alterações de percepção espácio-temporal causadas pelo uso intensivo da especiaria. Os exércitos degladiam-se em combates corpo a corpo, com armas brancas, pois todos dispõem de escudos electromagnéticos pessoais que inutilizam armas de fogo. Os escudos também têm tendência a reagir de forma altamente explosiva com lasers, aniquilando atacantes e atacados, o que inutiliza os lasers como arma. Em Dune há uma constante dicotomia entre tecnologia e treino humano.

A mitologia de Dune é, estranhamente, mediterrânica... a religião é sincrética, um agregado das várias tradições religiosas terrestres, e a ordem das Bene Gesserit representa uma força que se move nos bastidores, controlando os destinos do universo através das suas manipulações genéticas e da sua força mística (as Bene Gesserit são consideradas uma estranha inversão feita por Herbert aos Jesuítas). Os grandes mistérios, a fonte de poder das Bene Gesserit, estão ligados aos mistérios da mística feminina, aos cultos de fertilidade e sabedoria misteriosa que se associam à mulher (como o culto à deusa egípcia Ísis ou os cultos de mistérios gregos e romanos).

Em Dune encontram-se referências a clássicos da literatura: Atreides referencia a Ilíada e o trágico destino na casa de Atreu; o destino trágico do duque, conjugado com a bruxaria da sua mulher (as Bene Gesserit são consideradas feiticeiras) remete para Macbeth. Todo o ambiente épico do livro remete para os grandes épicos presente em todas as tradições civilizacionais (de Gilgamesh à Ilíada).

Quer a figura do império, quer os Fremen, quer a própria ascenção de Paul Atreides estão profundamente inspirados no médio oriente. A luta de Atreides, um estranho que cataliza o povo autóctone numa guerra sem quartel contra um distante e omnipresente império inspira-se na obra de T. E. Lawrence, o famoso Lawrence da Arábia. Este foi um oficial britânico que, durante a primeira guerra mundial, catalizou as aspirações dos povos da arábia e os transformou numa poderosa força militar que expulsou o império otomano da península arábica (não por acaso, os imperadores otomanos tinham o título de Padishah, o mesmo título do imperador de Dune). Os Fremen parecem profundamente inspirados nos beduínos - um povo do deserto, habituado às condições mais extremas, feroz e aguerrido. A ascenção épica de Paul Atreides como a encarnação do fanatismo das lendas Fremen, que transforma a força política numa força religiosa, liberta o seu povo e se assume como entidade política e militar inspira-se na ascensão do islamismo, cuja expansão em nome de Maomé ditou os destinos do médio oriente, do norte de àfrica e do nosso cantinho da europa. Mas não só: há também uns laivos da revolta sudanesa dos Mahdis.

Para aqueles que não vão ler o livro, recomendo vivamente a sua adaptação cinematográfica. Realizada por David Lynch, é um dos filmes incontornáveis da história do cinema, e representa, em conjunto com o 2001 de Kubrick, um dos raros momentos em que o cinema interpretou genialmente a magia imaginativa da melhor ficção científica.