sexta-feira, 14 de julho de 2006
Rainha dos Anjos
Rainha dos Anjos, Greg Bear, Devir, 2001, tradução de Luís Filipe Silva
Greg Bear
Wikipedia | Queen of Angels
Infinity Plus | Greg Bear interviewed
Foram escritas no século XIX algumas das maiores obras literárias de sempre; obras marcantes, que ainda hoje influenciam e se mantém actuais, monumentos que são à genialidade humana. Entre esse conjunto de grandes obras encontra-se Crime e Castigo, a ode de Dostoievsky à redenção do homem. Das profundezas do século XIX na Rússia, Dostoievsky toca-nos, criaturas da viragem do século XX para o XXI, com a sua história de Raskolnikov, homem de finas sensibilidades que desejando saber o que sente um criminoso assassina uma mulher. Após o acto horrendo, as sensações de triunfo depressa se desvanecem para o mais profundo arrependimento, acabando por se entregar e buscar a redenção no castigo gelado da Sibéria.
O germe de Crime e Castigo encontra-se perfeitamente encastrado no livro Rainha dos Anjos de Greg Bear. Neste livro acompanhamos quatro fios condutores que giram à volta de uma personagem central, Emanuel Goldsmith, cujo nome faz lembrar uma outra possível referência deste livro, o 1984 de George Orwell - não esqueçamos que o grande inimigo da sociedade, a encarnação de todo o mal contra o qual o Grande Irmão protege os cidadãos, tem o nome de Emanuel Goldstein, tão demasiado próximo de Goldsmith para ser coincidência. Goldsmith é o maior poeta afro-americano da sua época, cujas palavras inspiram admiração em todos os quadrantes. Mas sem que se saiba porquê, Goldsmith comete o impensável - assassina bárbaramente seis pessoas, que atraíra a sua casa sob pretexto de um serão literário (se me for permitido o reparo, em Crime e Castigo bastou uma).
O porquê do crime de Goldsmith é o ponto fulcral desta história que se passa no cada vez menos longínquo ano de 2047. O mundo de 2047 não é assim tão diferente do nosso mundo contemporâneo, é apenas mais... evoluído. A sociedade americana divide-se em três grandes facções, a dos terapeutizados, homens e mulheres que se submeteram voluntáriamente a terapia psicológica para eliminarem as imperfeições da alma humana, a dos não-terapeutizados, defensores acérrimos da sua pureza bio e psicológica, e a dos transformados, pós-humanos que se submeteram a intervenções biotecnológicas que os fazem ultrapassar a mera condição humana. Este trio social representa-se em três dos quatro fios condutores do livro. As personagens principais, cujas acções em busca da verdade sobre as acções de Goldsmith acompanhamos, são representantes de cada um destes géneros sociais.
A inspectora Mary Choi, uma oficial dos Defensores Públicos (uma sociedade avançada e terapeutizada não necessita de algo tão brutal como um corpo de polícia) é uma transformada a quem lhe é dada a tarefa de deter Emanuel Goldsmith após a descoberta macabra de seis corpos cortados aos bocados. Mary corre contra o tempo, tentando chegar a Goldsmith antes dos Selectores, uma sociedade secreta ilegal que se deleita em punir crimes através da aplicação de coroas do inferno, mecanismos que danificam permanentemente a mente daqueles a quem são aplicadas. As pistas de que Mary dispõe levam-na a Hispaniola, a ilha do Haiti e República Dominicana, unificada sob a ditadura dura e benévola de Sir John Yardley. Chegada a Hispaniola, Mary mergulha num país à beira da guerra civil e é aprisionada por um regime que cortou relações com os estados unidos. Mesmo assim, prossegue a sua missão, e descobre não Goldsmith mas o seu irmão gémeo, detido na ilha e submetido ao castigo da justiça a levam a correr todos os riscos para que a justiça, a verdadeira justiça, seja feita.
Paralelamente, Richard Fettle, um homem não-terapeutizado que pretende ser escritor e pertencente ao círculo de artistas amigos e aduladores de Goldsmith vive uma intensa luta mental ao tentar compreender o crime de Goldsmith. Após períodos de intensa confusão, Fettle consegue o socialmente impensável - por si só, sem ajuda de terapeutas, resolve os seus problemas psicológicas: em suma, auto-terapeutiza-se. Fettle é o homem comum, que tem de resolver interiormente as pressões de uma sociedade altamente complexa contra as pulsões da alma humana, que se recusa a perder a sua identidade.
Goldsmith encontra-se na mansão de Albigoni, um magnata cultural pai de uma das vítimas do poeta. Tentando compreender o porquê do crime, Albigoni contrata Martin Burke, um cientista caído em desgraça que é a maior sumidade no campo das psicoterapias. O método de trabalho de Martin Burke é penetrar no país da mente dos seus pacientes, um espaço virtual e metafórico, uma espécie de realidade virtual interior, residente na mente profunda de cada um. Mas ao penetrar na mente de Goldsmith, Burke depara-se com o fascinante e o inesperado. A mente de Goldsmith não se assemelha a mais nenhuma que tenha sido estudada; o país da mente de Goldsmith encontra-se dominado por figuras da mitologia vodu, as metáforas mentais para os traumas profundos que marcam Goldsmith. O elemento mais perigoso no país da mente está nas metáforas terem aniquilado a personalidade: no mais profundo do seu ser, Goldsmith não existe. Martin Burke emerge da experiência profundamente marcado e contaminado pelo vírus mental que aniquilou Goldsmith. Martin Burke é um Fausto típico, capaz de vender a sua alma para obter a satisfação dos seus desejos (esta é uma comparação que Greg Bear deixa muito explícita no livro) mas que acaba derrotado, enganado e destruído, acabando por procurar a sua redenção.
A razão fundamental para o crime de Goldsmith acaba por ser banal - não há grandes verdades fundamentais ou gigantescos insights sobre a moralidade humana. Filho de um pai violento, Goldsmith assistiu ao assassínio da sua mãe e acaba mais tarde por assassinar o próprio pai. Separado do irmão, reprime a sua personalidade original e exterioriza-se através da poesia, até que o contacto com a mitologia vodu prevalente em Hispaniola o leva à locura que, no fundo, nunca o abandonou.
O quarto fio condutor do livro não gira à volta do crime de Goldsmith, muito pelo contrário. Este fio condutor funciona como um pano de fundo histórico. Se bem que Rainha dos Anjos apresente convicentes cenários futuristas, o quarto aspecto do livro leva a contextualização e a previsão de um mundo futuro a outro nível. De certa forma, este quarto fio é como um noticiário que nos interrompe o dia a dia para nos trazer notícias distantes. Através deste artifício somos introduzidos ao AXEI, uma nave espacial robótica que fora enviada a Alfa Centauro para explorar os planetas que orbitam a estrela. As distâncias relativísticas são imperdoáveis, com a comunicação entre a nave e a Terra a demorar anos. Por isso a nave é dotada de uma avançada inteligência artificial, modelada nas personalidades dos seus criadores e numa incógnita: havendo a possibilidade do AXEI entrar em contacto com inteligências alienígenas, a inteligência artificial é programada para ser capaz de as avaliar e reconhecer, sendo capaz de tomar as medidas necessárias autónomamente. A exploração do AXEI é um sucesso: as imagens da exploração de um dos planetas de Alfa Centauro revelam a existência de vida, com ecossistemas complexos, e até indicações da existência de vida inteligente, com a descoberta de possíveis artefactos. Mas esses artefactos acabam por se revelar naturais, um produto dos ciclos do ecossistema do planeta. Perante a possibilidade de contactar com outra inteligência, o AXEI, isolado a anos-luz do planeta terra, sofre uma transformação que o faz ultrapassar o patamar da inteligência artificial para o limiar da personalidade, da consciência de si. O AXEI torna-se assim na primeira inteligência não humana, espelhada na terra por JILL, a contraparte do AXEI que simula os seus processos para que os controladores da missão consigam antecipar o que se passa á distânica de anos-luz.
Rainha dos Anjos termina com o emergir de uma nova consciência enquando a velha consciência humana continua a debater-se com os dilemas intemporais. Uma obra de mestre, de um dos mestres da f.c. contemporânea.