segunda-feira, 31 de julho de 2006
Algoritmos Secretos
Cryptonomicon
Wikipedia | Cryptonomicon
Cryptonomicon FAQ
Wired 11.09 | Neal Stephenson Rewrites History
A criptografia é um desporto radical para mentes altamente inteligentes. Os jogos lógico-matemáticos de cifras e códigos são acessíveis apenas aos iniciados nas intricacias mais profundas do cálculo matemático. O carácter obscuro da criptografia é exacerbado pelo secretismo que lhe é inerente. O objectivo final da criptografia, é bom não esquecer, é o de cifrar mensagens, transformando mensagens legíveis numa algaraviada totalmente incompreensível excepto para quem detém os códigos que permitem descodificar a algaraviada. A utilidade da criptografia é a de esconder, ocultar, e permitir que as comunicações sejam feitas de forma anónima e não detectada. O uso de códigos já tem uma longa história, tão longa como a história dos homens que desejam agir em segredo, mas há um padrão que se mantém: criar, e desvendar códigos não é tarefa fácil, especialmente se as formas mais elegantes e avançadas de matemática tiverem alguma coisa a ver com a mensagem cifrada.
Durante séculos a criptografia foi exclusiva a grupos isolados e a governos com as suas necessidades económicas e militares. Tratava-se de quem tinha necessidade de cifras - o general que quer informar os seus comandantes dos movimentos das suas tropas sem que os seus inimigos deles suspeitem, os governos que necessitam de enviar mensagens aos seus embaixadores, protegendo segredos de estado ou investigando segredos alheios, grupos obscuros com objectivos velados que se movem nas trevas da sociedade. Nos tempos recentes, a criptografia democratizou-se, graças a uma sociedade cada vez mais informatizada que depende de códigos e algoritmos para assegurar todas as operações que colocam este mundo em movimento. Banalizada em códigos de multibanco e protocolos informáticos, nem por isso a criptografia deixa de ter uma aura de mistério, de palavras ocultas que escondem fortunas ou segredos das mais altas esferas.
Mas a criptografia não é acessível a todos. Parte da sua mística reside precisamente nos seus códigos arcanos, legíveis apenas por aqueles que estão por dentro do segredos... e legíveis por uma élite rara, capaz de decifrar códigos que não conhece.
Neal Stephenson já tem uma apreciável carreira como autor de ficção científica. Autor de Snow Crash, romance satírico que se tornou uma das mais importantes obras de fc cyberpunk (pensem em Hiro Protagonist como nome do personagem principal e percebem porque é que o livro é satírico), foi capaz de abordar a rede de construção de cabos submarinos e os empreendimentos tecnológicos num mundo cada vez mais pequeno, em que as maravilhas naturais das praias asiáticas estão a um clique ou a um bilhete de avião de distância dos velhos centros europeus, no Mother Earth, Mother Board, artigo da Wired que aborda o desenvolvimento tecnológico como uma grande aventura de viagens em destinos exóticos. Capaz de ver o lado excitante dos recantos mais obscuros da tecnologia, só Stephenson conseguiria transformar algo tão àrido como a criptografia numa obra intrigante e excitante. Livros às voltas com códigos secretos é do que mais se encontra nos escaparates das livrarias, e até em alguns cinemas. Mas na maioria dessas obras o mundo da criptografia é apenas um adereço em histórias de conspirações secretas. No Cryptonomicon de Neal Stephenson, a criptografia é o elemento essencial sem a qual tudo o resto pouco faria sentido.
Cryptonomicon é um romance global, tão à vontade nas ilhas do pacífico sul como nas costas da suécia, na nova inglaterra, em shangai ou no meio do atlântico. É também um romance que atravessa épocas, dividindo-se entre o mundo de guerra global da segunda grande guerra e o mundo da economia global dos tempos de hoje. Cryptonomicon acompanha as aventuras e desventuras de um heterogéneo grupo de personagens que se cruza entre si e os seus descendentes num teatro global onde as subtilezas criptográficas assumem uma importância vital para a estrutura da sociedade.
Lawrence Waterhouse é um matemático introspectivo com uma capacidade inata de compreender a mecânica dos algoritmos. Altamente inteligente, Waterhouse é o tipo de génio que resolve os problemas do mundo dentro da sua cabeça e depois não está para se dar ao trabalho de aplicar na realidade os modelos mentais que circulam na sua mente acelarada. É a diferença entre descrever ao pormenor o funcionamento de um mecanismo e o construir o mecanismo. Perfeitamente capaz do primeiro, Waterhouse cedo se desinteressa das aplicações prácticas, deixando a sua mente perder-se enquanto decifra o próximo problema que lhe desperta o interesse. Colega e amigo de Alan Turing em Princenton, Waterhouse fascina-se com as pesquisas de Turing no campo das máquinas analíticas, descrevendo entre si os primórdios dos primeiros computadores. Turing apresenta-o ao seu amante, Rudy Hackleberger, matemático leibniziano que irá desempenhar um papel fundamental no esforço de guerra criptográfica nazi. O ataque japonês a Pearl Harbour apanha Waterhouse desprevenido como membro da banda de um navio de guerra estacionado no Hawaii. Ao alistar-se na marinha, Waterhouse passou o exame de admissão a resolver uma arcana e intricada questão relacionada com as equações de Navier-Stokes (que descrevem o movimento de fluídos) que lhe surgiu na mente ao ler a primeira pergunta do questionário, sobre quanto tempo demoraria um barco a ir do ponto A ao ponto B. A marinha considerou-o incapaz de qualquer outro serviço que não o de músico nas bandas navais, mas após Pearl Harbour destaca-o para os serviços de inteligência, onde Waterhouse revela a sua inata capacidade para descodificar sistemas criptográficos. Torna-se assim um dos mais brilhantes e respeitados criptógrafos dos serviços secretos, contribuindo imensos novos conhecimentos para o cryptonomicon, um compêndio disperso dos saberes critpográficos e das técnicas de cifração e decifração. Waterhouse é destacado para Inglaterra, onde presta serviço no famoso Bletchley Park, o centro militar onde eram descodificadas todas as mensagens inimigas. Em Bletchley Park Waterhouse reúne-se com Turing, que ajudara no esforço de decifrar o inquebrável código Enigma, e inicia um trabalho não de decifração mas de desinformação. A importância dos códigos Enigma era vital: todas as mensagens do alto comando nazi eram cifradas nesse código, supostamente inviolável - e a história da captura das máquinas Enigma e da decifração dos seus códigos um dos momentos mais brilhantes da Segunda Guerra Mundial. Mas para que a decifração das mensagens tivesse validade era importante que os alemães não se apercebessem de que os seus códigos haviam sido quebrados. Na realidade histórica, este esforço de desinformação resultou no bombardeamento de Coventry, de que Churchill havia tido conhecimento mas que não dera a ordem de evacuação da cidade, para que os alemães não percebessem que os seus códigos haviam sido descobertos. Na ficção informada de Cryptonomicon, Waterhouse participa na criação de elaborados esquemas de desinformação, levados a cabo por um destacamento especial de Marines americanos e de SAS britânicos, que plantam provas fictícias por detrás das linhas inimigas para que os alemães não desconfiem da estranha precisão aliada em encontrar submarinos no Atlântico Norte ou em afundar comboios navais no mediterrâneo. Os sucessos aliados deviam-se ao quebrar dos códigos das mensagens, que lhes permitiam saber exactamente onde atacar, e o trabalho de Waterhouse e do destacamento 2702 era o de criar provas do contrário, através de operações especiais ou do estabelecimento de estações de triangulamento radiofónico fictícias. O destacamento 2702 era anteriormente o destacamento 2701, mas sendo este número um número primo muito específico Waterhouse pediu a alteração do nome, pois o simples 2701 poderia fornecer uma pista criptográfica que sinalizaria aos alemães a decifração dos seus códigos. Com a guerra na Europa a chegar ao fim, que para os criptógrafos e conhecedores dos segredos de estado aconteceu dois anos antes do final das hostilidades físicas, Waterhouse é destacado para a Ásia, onde colabora no esforço militar contra o Japão. Para decifrar os códigos japoneses Waterhouse desenha e constroi um computador primitivo, apoiado em cartões perfurados e válvulas. Na Ásia, Waterhouse depara-se com um estranho código indecifrável, chamado de Arethusa, criado pelo rival/amigo de Turing e Waterhouse, Rudy Hackleberger (rival devido aos tempos de guerra, mas amigo pelo respeito mútuo criado pelos laços matemáticos). Ao decifrar o Arethusa, Waterhouse depara-se com uma estranha conspiração, que terá repercussões no futuro.
Bob Shaftoe é mais do que o comum soldado dos fuzileiros norte-americanos. Inteligente e perspicaz, Shaftoe é dotado de uma extrordinária coragem, que o torna capaz de realizar as missões mais arriscadas. Quando destacado em Shangai antes da Segunda Guerra, Shaftoe trava uma inesperada amizade com Goto Dengo, um japonês que o ensina a apreciar os prazeres do sushi e da poesia haiku. A sua coragem nos campos de batalha leva-o a ser integrado no destacamento 2702, passando a guerra em missões secretas de desinformação um pouco por todo o mundo. Uma dessa missões corre mal - a traineira onde o destacamento 2702 seguia disfarçado de negros das caraíbas é afundado por um submarino alemão comandado pelo idiosincrático Comandante Bischoff. Tendo capturado personagens conhecedoras de tantos segredos vitais, Bischoff é alvo de uma campanha de desinformação que leva o alto-comando alemão a acreditar que o seu submarino foi capturado por tropas especiais aliadas. Perseguido pelas marinhas aliadas e nazi, Bischoff encontra refúgio na Suécia, onde convence Shaftoe e o inefável Enoch Root a participar numa estranha conspiração, ajudados por contrabandistas finlandeses e por um Rudy Hackleberger desiludido com a estupidez do regime nazi. Shaftoe encontra a sua morte nas Filipinas, onde consegue chegar por caminhos ínvios, tentando resgatar o seu filho das garras da soldadesca nipónica que ocupava brutalmente as ilhas.
Se Waterhouse é o prototípico génio, uma mente brilhante incapaz de aplicar os seus conhecimentos nas realidade prosaica e banal, Enoch Root é o seu perfeito oposto. Culto e erudito, Root é um homem de acção, um clérigo pertencente a uma ordem secreta que colabora activamente no esforço de guerra do destacamento 2702. Root é um homem de bastidores, manipulando as restantes personagens de forma subtil. Root forma uma ponte entre o passado e presente, influenciado os personagens do romance ao longo dos tempos.
Goto Dengo é um engenheio de minas que perde os seus ideais ao viver a brutalidade da guerra na Ásia. Desiludido com a brutalidade e as atrocidades cometidas pelos seus compatriotas em nome do imperador, Dengo é destacado para a construção de um bunker secreto nas Filipinas. Apercebendo-se que a conclusão da construção o levará à morte - o bunker, na tradição de alguns túmulos imperiais, é tão secreto que todos aqueles que participam na sua construção são sumáriamente executados, Dengo faz um trabalho de génio, construindo um bunker à prova de invasões, mas que também funciona como uma gigantesca máquina de evasão para si e para alguns dos mais resistentes dos seus trabalhadores. Após a capitulação do Japão, Dengo trabalha activamente na reconstrução do país, criando aquela que no futuro será uma das melhores empresas mundiais de grandes projectos de engenharia.
Nos dias de hoje, Randy Waterhouse, neto de Lawrence mas desconhecedor dos segredos do avô, abandona uma vida entediante nas fronteiras do mundo académico para fundar uma nova empresa nas Filipinas. A Epyphite, o sugestivo nome da empresa, tem dois objectivos - provar a sua viabilidade através de um rentável negócio de comunicações nas Filipinas, e expandir-se. A sua expansão passa pelo Sultanato de Kinakuta, país fictício inspirado no sultanato do Brunei. Rico em petróleo, Kinakuta é governado por um sultão branco de origem britânica (tal como o Brunei é governado pelos rajás brancos, súbditos da coroa britânica). Em Kinakuta, Randy envolve-se num projecto de criação de um data haven, um local seguro onde dados informáticos estarão guardados ao abrigo das vontades governamentais. Os elementos da Epyphite, um bando heterogéno de criptógrafos libertários encabeçados por um israelita cujo projecto de vida é impedir genocídios, acabam por se descobrir num pântano. A criação do banco de dados atrai criminosos obscuros, membros corruptos de governos totalitários e a rapacidade de investidores capazes de usar as mais arcanas armas legais para obterem o controlo das acções da empresa. Randy vive um verdadeiro calvário, desde os dias em que numas escaldantes Filipinas põe de pé o negócio original. Apaixona-se por Amy Shaftoe, neta de Bob Shaftoe, que trabalha com o seu pai na colocação de cabos submarinos e no resgate de tesouros submersos. As operações de colocação de cabos revelam o paradeiro de um submarino da Segunda Guerra, cheio de barras de ouro e de uma referência ao avô de Waterhouse, que leva Randy a descobrir os segredos do seu avô, nos quais se incluem os códigos Arethusa decifrados. Randy atrai as atenções de Enoch Root, que o manipula na descoberta do segredo dos códigos Arethusa - a localização de um tesouro escondido nas selvas filipinas, dentro do bunker construído por Goto Dengo. Esse tesouro está ligado com o submarino afundado - este faz parte de uma rede submersa da Segunda Guerra mundial, que tranportava ouro e materiais altamente valiosos num comércio submerso entre a Alemanha nazi e o Japão imperial, com ouro trocado por segredos industriais e tecnológicos. O submarino encontrado pelo pai de Amy era o submarino de Bischoff, roubado por este ao alto comando naval alemão, onde a conspiração oculta de antigos inimigos transportava ouro que planeava ocultar nas Filipinas, para o recuperar após o final da guerra. O plano falhou, pois o submarino foi afundado em pleno mar da China, mas o segredo não se perdeu, guardado por Root ao longo dos anos. A descoberta do tesouro despoleta uma série de aventuras rocambolescas em que um relutante Randy Waterhouse se vê envolvido.
Mas e então, a critpografia? Ela é o fio condutor do livro; tudo, no livro, se passa à volta dos códigos; grande parte da acção deve-se aos códigos. Boa parte das páginas do livro são dedicados à explanação de códigos e a resenhas onde a história se mistura com pormenores ficcionados; de facto, o livro até contém um script em Perl que gera um algoritmo encriptador. Toda a acção passada durante a Segunda Guerra depende dos segredos criptográficos - as excitantes acções de desinformação do destacamento 2702, os insights de Waterhouse na decifração de códigos militares. O fio condutor da acção do livro passada na época contemporânea envolve-se com as consequências da internet e da criptografia, e do que essa mistura significa para uma socidedade onde os dados binários assumem uma importância cada vez mais vital.
Se pensam que este texto já vai longo, esperem pelo livro... o Cryptonomicon é uma obra volumosa (a minha edição ultrapassa largamente o milhar de páginas). Volumoso, mas não entediante - Neal Stephenson criou em Cryptonomicon uma história muito pessoal da informátia, disfarçada de thriller tecnológico. Se as personagens e as situações são fictícias, o enquadramento não o é. Conhecedores da história da Segunda Guerra conhecem bem a importância do decifrar dos códigos Enigma para a derrota nazi. A rede de comércio submarino é um facto obscuro, mas bem real, da Segunda Guerra. Havia submarinos destacados para esse serviço, que transportava debaixo das águas a tecnologia alemã para o Japão em troca do ouro saqueado pelos nipónicos em toda a Àsia. Bletchley Park e Alan Turing são referências obrigatórias na história da informática - o esforço de quebra das cifras alemãs levou a construção dos primeiros computadores. As aventuras da criação de uma empresa da nova economia reflectem bem os ambientes dos mercados económicos, patrulhados por investidores milionários que se apoiam em advogados para extraírem lucro sem nada construírem. O problema dos bancos de dados privados já é uma realidade, permitindo capacidades inimaginadas que ultrapassam as proezas bancárias offshore. E a tentativa dos governos em controlar a disseminação das tecnologias criptográficas é bem real.
Em Cryptonomicon, Neal Stephenson ultrapassa as barreiras do movimento cyberpunk, com um brilhante romance histórico que mergulha nas raízes do mundo informático tão adorado pelos cyberpunks. Cryptonomicon é mais do que pura ficção científica - é história da ficção científica, contada de forma excitante e empolgante.