sexta-feira, 14 de abril de 2006

Pecar no século XXI

Correio da Manhã | Igreja anuncia novos pecados

O Vaticano decidiu actualizar-se, e publicou uma lista de novos pecados para o século XXI. Ainda não a li, portanto desconheço se o Vaticano se actualizou científicamente, criando novos pecados como a insemninação artificial via sémen adquirido anonimamente na internet, ou a pesquisa genética. De qualquer forma, alguuns dos novos pecados têm sido muito justamente badalados. Ficam assim os crentes católicos seguidores do poder de Roma que passar muito tempo na internet, muito tempo a ler jornais ou a ver televisão significa descurar as suas obrigações de reflexão diária sobre a bíblia, constituindo por isso um pecado.

Até concordo com o pecaminizar do consumo televisivo. Tendo a televisão que temos, ver televisão tornou-se um desporto para portadores de insuficiência mental. Realmente, perder tempo a ver televisão é um pecado, até para mim, que sou ateu. Nunca foi tão verdadeiro o velho aforismo de que "a televisão apodrece o cérebro".

Agora os restantes pecados... estou mesmo a ver o confessionário típico de uma qualquer típica igreja numa qualquer típica paróquia portuguesa. O senhor padre, solene na sua negra batina, observa a fila de idosas beatas que esperam pacientemente a sua vez no confessionário. Secretamente, talvez o senhor padre anseie pelo dia em que uma das suas devotas beatas lhe confesse proezas sexuais inimagináveis para uma senhora tão devota, com laivos de traição à mistura, ou algum escabroso pormenor de um assassínio passional. O senhor padre entra no confessionário, fecha as cortinas, e aguarda.

- Perdoai-me, padre, porque pequei... - ouve-se um vulto ajoelhado do lado de lá da janelinha de grades que separa o padre do penitente.
- Diz lá, minha filha, que pecados cometeste - diz o padre numa voz paternal, enquanto pensa para consigo próprio "que pecados cometeste desde ontem, que passaste cá a tarde inteira a chagar-me o juízo".
- Pois, senhor padre, bem sei que ontem me confessei, mas vi ontem à noite no telejornal que o santo papa disse que havia novos pecados...
- Então conta lá, minha filha, tens passado assim tempo a navegar na internet?
- Na quê, senhor padre?
- Aquela coisa dos computadores...
- Ah, isso, onde o meu netinho passa tanto tempo que nem me fala...
- Então, minha filha, se calhar lestes demasiados jornais...
- Fiz o quê, senhor padre? Olhe que o meu marido nem me deixa tocar no jornal de futebol dele... e eu juro que nem sequer olho para as letras gordas do jornal onde a peixeira me embrulha o peixe!
- Então diz lá, minha filha, que pecado tão gravoso cometestes...
- Ó senhor padre, é que isto do santo papa ter proíbido a televisão...
- Não foi bem proibir, foi mais avisar para o excesso de tempo passado a ver televisão.
- Pois, senhor padre, mas é que eu não consigo. A tentação, senhor padre, apossa-se do meu coração como um demónio da minha alma, e eu não consigo, senhor padre. Lá em casa, mal me levanto, ligo logo a televisão. Mas eu não consigo passar a manhã sem aquela carinha laroca do Jorge Gabriel...
- Mas ver esse programa, minha filha, até tem perdão. Costuma lá ir um senhor padre. Agora, minha filha, espero que não caias na tentação de ver aquele cozinheiro que se suspeita que pratique abomináveis actos contra-natura, ou aquele programa que só mostra casos escabrosos.
- Não, senhor padre, nem pensar nisso. Gosto mesmo é da carinha laroca do meu Jorginho...
- Pronto, minha filha, então reza três avé-...
- Mas, senhor padre, ainda não confessei tudo! É que depois do jorginho, eu não posso perder o telejornal, não é? Temos que saber o que é que se passa no mundo, não é? E tão mal que ele vai, cheio de maldade...
- Tendes razão, minha filha, tendes razão...
- E depois, também não posso perder o programa do malato. Também gosto tanto da carinha laroca e gorduchinha do malatinho, senhor padre... e depois, mudo de canal e vejo sempre as telenovelas. Mas, senhor padre, eu só vejo as telenovelas por causa dos maus exemplos, que é para eu não fazer como aquelas malvadas das novelas...
- E depois, minha filha?
- Depois é o meu marido, que ao jantar quer sempre ver o telejornal.
- Então, minha filha, reza...
- Depois, senhor padre, fico dividida. O meu coração até se parte. Nunca sei se hei de ver o malatinho se as telenovelas... tenho andado a pensar em pedir ao meu marido que me compre outra televisão, mas agora com isto do santo padre...
- Fizestes bem, minha filha, fizestes bem. Olha, é verdade que tens descurado a tua meditação sobre a sagrada bíblia. Vê menos televisão. Tens de resistir às tentações da televisão, minha filha. Agora vai em paz, reza cinco avé-marias e um pai-nosso, e vai em paz, que deus tudo perdoa.
- Ai, senhor padre, vou mas é rezar dez avé-marias e cinco pais-nossos...
- Pronto, minha filha, vai lá, vai.

No dia seguinte, o senhor padre, solene na sua batina negra, contempla a fila de beatas que o aguarda junto ao confessionário. Claro, pensa consigo mesmo. Lá está ela. Ainda ontem te confessei. Já cá estás outra vez...
- Então, minha filha...?
- Ai, senhor padre, é que eu não resisti ao meu jorginho e ao meu malatinho...