Tenho de tirar o meu chapéu aos editores do jornal O Ericeira (não é que use chapéu, mas comprendem, decerto, a antiquada expressão linguística). O Ericeira é uma mistura de jornal regional com folha local de coscuvilhices da vila, que sabe bem ir lendo para se estar a par das pequenas histórias da vida da vila. Posso com estas palavras estar a menosprezar o jornal, mas, muito pelo contrário. Num mundo cada vez mais global, onde os espirros em Timbuktu e as intoxicações alimentares em Shenzen abrem telejornais, é também cada vez mais importante abrir um jornal que traga notícias que não interessem para o ambiente catastrófic-mediático do que actualmente passa por jornalismo. E quem não gostar de ouvir uma coscuvilhice que atire a primeira pedra...
Os editores do jornal abriram a sua edição de abril com um rigoroso exclusivo mundial: uma entrevista a um milionário àrabe que planeia investir num projecto turístico inovador aqui na Ericeira. Faysal Mahafara, milionário dos areais arábicos entrevistado no seu recluso quarto de hotel no Vila Galé (o venerável hotel de turismo da ericeira, sempre a hospedar desde os anos 30), expôs aos jornalistas o seu projecto de criar, ao largo da Ericeira, uma ilha artificial em forma de coração. A ilha distaria cerca de 250 metros das arribas no seu ponto mais próximo da costa e seria acessível através de um heliporto, de um monocarril que aproveitaria o arruinado molhe do porto de pesca da Ericeira, e um teleférico que partiria das furnas. O porquê de tão avultado investimento prende-se com raízes mafrenses que Mahafara teria, o que lhe deu vontade de investir no concelho com um projecto semelhante às ilhas artificiais que se erguem ao largo do Dubai. O artigo é ilustrado por uma infografia que sobrepõe a uma imagem de satélite da Ericeira a tal ilha, o monocarril e o teleférico, e ainda nos informa que a Câmara de Mafra acolheu entusiásticamente o projecto e planeia criar uma zona de exclusão de pesca com compensações para os pescadores prejudicados com tão arrojado projecto turístico.
Exactamente. Edição de abril. Saída a tempo do dia um de abril. Cheia de reportagens sobre o carnaval na Ericeira. Perceberam, ou preciso de fazer uma infografia que explique o brilhantismo desta partidinha do dia das mentiras? Brilhante ideia!
Já que falamos da Ericeira, é de notar que o molhe do porto da Ericeira está cada vez mais... estraçalhado. Lembro-me do ano em que o molhe foi inaugurado, com um espantoso passeio mar adentro ladeado por iluminação pública e a terminar num daqueles farolins vermelhos que aos olhos do menino de oito anos que eu era encerrava a promessa de excitantes aventuras em mar aberto, contos de pirataria e curiosas viagens de exploração aos confins mais escondidos da terra. No ano seguinte, o farol era uma ruína, e agora dele só restam as memórias. Em poucos anos, o mar destroçou o molhe do porto da Ericeira, estilhaçando todo o quebra-mar até ao molhe onde atracam os barcos dos pescadores. E nos vinte anos que têm passado sobre a inauguração do porto da Ericeira, ninguém tem tentado fazer alguma coisa para reparar os estragos. Compreende-se. É um porto de pesca, não um porto de recreio. O destino de um punhado de pescadores pouco interessa aos poderes institucionais, que certamente não votariam o porto da Ericeira ao esquecimento se cá atracassem os iates de recreio e os barquinhos de fim de semana dos ricos e endinheirados.
O mar da Ericeira é assim, forte e implacável. Mas os dias tranquilos da primavera já chegaram, e o azul do céu alia-se com a maré-baixa para criar manhãs esplendorosas na nossa querida vila.
Nunca terei a veleidade de me considerar ericeirense, por muitos anos que cá viva, ou sequer de me dizer ericeirense. Serei sempre forasteiro em terra estranha, mas terra à qual pertence o meu coração.