sábado, 15 de abril de 2006

City of the Dead

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City of the Dead
Really Scary | City of the Dead
Herbert Lieberman

A popularidade de programas como o CSI transformou a morgue num local aprazível. Na sua melhor iteração(CSI Las Vegas, que é sempre um prazer de ver), um detective fortemente inspirado em Sherlock Holmes, minucioso, idiossincrático, meticuloso e conhecedor dos dados mais arcanos relacionados com as ciências forenses coloca em campo as suas capacidades dedutivas para resolver casos de assassínio brutal, conseguindo identificar o criminoso através de um minúsculo fragmento de prova incriminatória. Os cenários são sempre fascinantes - cenários de crimes horrendos que se destacam pela sua banalidade - mortos na casa de banho, em quartos de hotel ou em vivendas suburbanas, e envolvem sempre uma visita à morgue, um local limpo e brilhante, cheio de aparelhos de alta tecnologia, onde entre o lusco-fusco ponteado pelo brilho de luzes fluorescentes a dissecação de um corpo perde todos os seus contornos macabros e se assemelha ao desmontar de um aparelho em busca da peça defeituosa. Tudo é limpo, sem o mais leve indício de cheiros nauseabundos ou fluídos de cores suspeitas. Não há sordidez na banalidade da morte.

City of the Dead é o extremo oposto deste tipo de cenários. Escrito em 1976 por Herbert Liberman, um escritor de policiais negros, City of the Dead não tem medo da sordidez. Antes, abraça-a, e torna-a a ideia condutora de todo o livro. Sobre o autor, tenho pouco a dizer. Encontrei poucos dados biográficos, e há sintomas de que é um autor em vias de ser esquecido. Uma pesquisa na Amazon revela que os seus livros podem ser adquiridos por míseros cêntimos, o que não prenuncia um autor vivo e famoso. É pena. City of the Dead é um livro poderoso e visceral, e não merece ser consignado ao esquecimento literário.

City of the Dead faz-nos seguir dez dias na atribulada vida de Paul Konig, o director dos serviços de medicina legal da cidade de Nova Yorque. Konig, envelhecido e à beira da reforma, é um homem amargo e solitário, viúvo e abandonado pela filha, que ele nunca foi capaz de compreender e deixar viver. Konig também é um mestre na sua profissão, um sábio cujo conselho é procurado por especialistas em medicina legal das morgues de todo o mundo. Irascível e profundamente meticuloso, Koning é respeitado pelos seus inimigos e pelos seus colegas de trabalho. Mas as pressões sobre Konig são tremendas. Alguns subordinados mais ambiciosos tentam tudo para o destronar, e as politiquices às voltas com assassínios raciais em prisões, empoladas por políticos em busca de votos, ameaçam deitar um véu de escândalo sobre o trabalho da sua vida. Mas Konig, irascível e superior, mantém-se alheio a tudo isso, e não hesita em usar a sua verdade para conseguir aquilo que ele considera ser a justiça. No início do livro Lieberman cria uma cena brutal, que nos dá todo o carácter do seu personagem, bem como o carácter do livro. Em tribunal, perante um acusado de assassínio e um advogado de defesa que sustenta que a vítima se suicidou, Konig sabe que a autópsia não revelou dados suficientes para incriminar o acusado. Mas Konig olha-o, e decide, intimamente, que o acusado é culpado. Konig não mente, não distorçe a verdade. Mas consegue usar as palavras herméticas da ciência forense para se assegurar que o acusado é incriminado pelo assassínio.

Não há bem ou mal distintamente separados, como a fronteira entre o preto e o branco, em City of the Dead. Há apenas ambição desmedida, inveja, irascibilidade, decadência e sordidez. Muita sordidez - a Nova Yorque que Lieberman descreve neste livro é um verdadeiro purgatório de cadáveres, crimes aleatórios e decadência urbana. Nova Yorque é um submundo povoado por seres decrépitos e amorais, que se movem livremente por entre as ruínas da paisagem urbana marcada pela pobreza e pelo abandono.

Os dez dias da vida de Konig que seguimos em City of the Dead são os mais atribulados da sua carreira. Konig é acossado de todos os lados - todos os seus inimigos tentam derrubar Konig, por motivos que vão desde a política à ambição desmedida. A sua perícia é posta à prova quando a macabra descoberta de pedaços de corpos o obriga a usar tudo o que sabe para transformar uma massa disforme de pedaços de corpos humanos em duas vítimas identificáveis. Para complicar, a sua filha é raptada por um especialmente amoral e perigoso bando de terroristas urbanos. O único refúgio de Konig é o seu trabalho. É na morgue, entre os cadáveres, a analisar, dissecar e descobrir as causas do óbito que Konig está no seu melhor. Tudo o resto corre mal. Apenas o crime dos cadáveres desmembrados é resolvido. Os inimigos de Konig levam a melhor, e a filha de Konig é assassinada pelos raptores. No final do livro, num pormenor perfeito para um policial negro, é Konig que efectua a autópsia da própria filha.

As páginas de City of the Dead são negras, viscerais. A precisão das autópsias não nos nega o horror da decomposição dos restos de humanidade. A complicação das intrigas políticas não nos poupa à mesquinhez e sordidez das ambições humanas.

City of the Dead é um livro ameaçado de esquecimento. Sendo um policial, de um autor pouco conhecido, está enterrado entre outros livros inócuos do sub-género, esquecido por entre resmas crimes e castigos. É pena. City of the Dead é um daqueles livros que transcende géneros, em que a perícia do autor, combinada com a ideia que norteia o livro, leva o leitor a embrenhar-se num mundo negro, num mundo sem esperança, onde a rotina anda de mãos dadas com a decadência.