segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

Picoverso



Picoverso, de Robert A. Metzger, edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta Gigante, 2005.

Livros do Brasil | Picoverso
The SF Site | Picoverse

Recentemente, tem-se assistido a uma série de lançamentos de obras literárias de ficção científica que antigamente seriam acessíveis apenas por importação directa. Algumas editoras já estabelecidas no mercado, como a Presença, criaram novas colecções dedicadas à FC. Outras, como a clássica colecção argonauta da Livros do Brasil, redimensiona as suas edições, apostando em novos autores. Juntam-se a estes esforços os de novas editoras, algumas de existência efémera, apostadas em inovar o mercado editorial português. Da perspectiva de um leitor, o panorama é ao mesmo tempo apaixonante e de pesadelo. Por um lado, é muito bom ler, finalmente em língua portuguesa, autores como Neal Stephenson, Bruce Sterling, Neil Gaiman ou H. P. Lovecraft, para além de autores novíssimos, alguns conhecidos por publicarem contos no Infinty Plus (um site dedicado ao conto de FC). O reverso da medalha é que nem há tempo nem dinheiro para tanto livrinho bom. Tempo para os ler e dinheiro para os comprar. Mas a verdade é que é bom ver nos escaparates das livrarias títulos que escapam à monotonia das grandes obras literárias ou ao acumular sensaborão de frases bonitinhas que caracteriza a literatura light, aqueles livrinhos de capas com cores garridas sobre problemazitos sentimentais que venedem como pão quente.

Metzger pertence ao restrito clube de autores de FC que também são cientistas de renome nos seus campos de investigação. Não são muitos os que têm esta distinção - recordo-me de Gregory Benford ou de Vernor Vinge, e poucos mais. Metzger é um investigador na àrea de semicondutores, sistemas de comunicação e telecomunicações de alta velocidade, para além de colaborador assíduo da Wired. A vantagem de ter autores de FC que são simultâneamente cientistas é que para além dos ingredientes típicos da FC, também podemos contar com uma ciência verosímil, um aspecto importante da Fc. A FC é o território por excelência da especulação sobre o futuro do nosso desenvolvimento tecnológico, mas se essa especulação não for alicerçada sobre uma boa base científica, ficamos com mais um produto de consumo, uma história de aventuras passada num cenário espacial, e por isso rotulada de ficção científica. Não é que esses livros não tenham a sua piada, mas de alguma forma denigrem os esforços mais sérios no campo da ficção científica, injustamente considerada pelos meios mais mainstream como algo menor, meras aventuras juvenis à mistura com planetas e naves espaciais.

Picoverso é uma obra com ambos os pés bem assentes sobre dois diferentes campos. Por um lado, temos a espculação informada sobre aspectos mais esotéricos da pesquisa científica. Picoverso inspira-se fortemente na física, na física moderna dominada por cientistas que são quase sacerdotes, donos de uma sabedoria impenetrável (pelo menos para quem não domina matemática avançada) que com os seus artefactos de altíssima tecnologia perscrutam os segredos mais ínfimos da natureza, da matéria e do próprio tecido do universo. Ler Picoverso é ler a aplicação das ideias de Hawking e outros à ficção científica. Espaço-tempo mutável e flexível, múltiplos universos paralelos, criação de buracos negros em laboratório, espaços multidimensionais, paradoxos temporais aplicados a universos paralelos, energia de fusão... a lista é quase infindável, misturando todos os conceitos que na boca dos físicos nos parecem quase incompreensíveis, mas que no livro nos parecem perfeitamente naturais. Que o são; mas para os compreendermos, temos de compreender profundamente a matemática. Uma das verdades da física contemporânea é que as explicações que divulga sobre o universo, as partículas elementares e a origem do universo são aproximações bastante rústicas aos resultados de elegantes equações matemáticas recheadas de símbolos incompreensíveis para os leigos.

Mas Picoverso é também uma empolgante história de aventuras. Os heróis e os vilões saltam de universo em universo, numa luta cujo desenlace pode significar a extinção de todos os universos possíveis habitados pela espécie humana.

Picoverso descreve-nos um mundo futuramente próximo, muito semelhante à nossa realidade, em que a pesquisa sobre a tecnologia de fusão nuclear leva à criação do Sonomak, um "forno" (não é a palavra certa, mas exprime o conceito) onde plasma é aquecido com uma míriade de lasers que pulsam em frequências medidas ao femtosegundo (a 0,000000000001 segundos, mais precisamente). A utilização de um sonomak no máximo da potência leva a que se gere no laboratório um universo em miniatura, um universo em que os nossos segundos equivalem a anos. A coisa complica-se através da intervenção de uma mulher poderosa, uma entidade extra-universal criada por uns Criadores desconhecidos, que a colocaram na terra para evitar que a humanidade desenvolvesse tecnologia capaz de mexer com o tecido do espaço-tempo, pois o uso desta tecnologia pode levar à obliteração de todos os universos possíveis. Mas esta entidade está farta de ser um instrumento dos seus criadores e tenciona ajudar a criar um universo paralelo para escapar. A criação deste novo universo gera uma sequência de acontecimentos que pode levar à aniquilação de todas as realidades possíveis, e os criadores do sonomak saltam de universo em universo tentando remediar a situação, que culmina num cataclismo de nível cósmico com a intervenção de uma outra entidade extra-universal, que cataliza a aniquilação dos universos num laço temporal que lança a sobrevivente de entre os criadores do sonomak ao passado, instantes antes da máquina ser utilizada pela primeira vez, para impedir o desencadear dos acontecimentos. Esta nova criatura, um observador imparcial, leva-nos a pensar se toda a realidade humana não passa de uma criação em laboratório, uma experiência levada a cabo por seres inconcebíveis para a mente humana.

A principal lição de Picoverso é que a tecnologia é uma faca de dois gumes. Tanto pode ser utilizada para a criação como para a destruição, e quando a tecnologia se torna muito avançada a perigosa linha que separa a criação da destruição é demasiado ténue, o que obriga a uma maior maturidade da própria espécie humana. Uma interessante mensagem para estes tempos, em que nunca estivemos tão tecnológicamente avançados nem tão perto da aniquilação de tudo quanto construímos, já não numa catástrofe nuclear, mas nas catástrofes ambientais provocadas pela falta de maturidade da espécie humana no uso das maravilhosas tecnologias que cria.