sábado, 19 de novembro de 2005
Marionetas Cósmicas
Cosmic Puppets
Philip K. Dick
Bibliografia de Dick em português
Barton, o protagonista desta curiosa obra de Philip K. Dick é um homem que, apesar de nascido numa cidadezinha da Virgínia, nunca lá havia regressado após de lá ter saído aos oito anos. Um dia, a meio de uma viagem, apercebe-se de que está próximo da sua terra natal e decide, num tom de nostalgia pela infância, fazer uma curta visita. Quando lá chega, revê a cidade, as suas casas e as suas ruas, fica abismado: nada é como aquilo que se lembra. A cidade está lá, as ruas estão lá, as casas estão lá, a paisagem não mudou, mas… os pormenores são diferentes. As ruas têm outros nomes, as lojas são outras. Mudanças subtis, que o abalam profundamente. Será a memória de Barton que falha, ou algo mais se passará? Tentando saber a verdade sobre as suas memórias, Barton consulta os jornais do ano em que partira, e faz uma descoberta arrepiante: de acordo com os obituários, Barton teria morrido de escarlatina aos sete anos de idade.
Inquieto e desesperado, pois duvida das suas memórias e sente-se a enlouquecer ao descobrir que deveria estar morto, Barton regressa à cidade para tentar desvendar o mistério. Qual será a verdadeira realidade? A da mente de Barton, das suas memórias, ou a realidade palpável da cidade que o rodeia?
Sendo um livro de Philip K. Dick, a resposta é a menos óbvia. Barton não é nenhum louco alucinado, antes pelo contrário. A cidade, após a saida de Barton quando criança, transformou-se num campo de batalha entre duas poderosas forças cósmicas. Ormuzd, uma força construtiva, e Ahriman, uma força destrutiva, deram tréguas à sua luta cósmica e instalaram-se na cidadezinha, onde continuam a sua guerra, que faz parte dos seus destinos enquanto forças cósmicas. Um destino que, apesar de todo o seu poder, não conseguem alterar.
São estas duas forças que alteram a percepção da realidade na mente dos habitantes da cidade. Mas o controlo não é completo: na mente dos habitantes sobrevivem fiapos de recordações de uma outra cidade, pequenos vislumbres da cidade real. Barton, sendo o único com recordações completas, torna-se o catalizador de uma reconquista perceptiva do espaço urbano por parte dos habitantes da cidade, que assim se subtraem ao poder das forças opostas.
Finda a transformação, o conflito cósmico transfere-se para o seu devido lugar - o espaço cósmico. E a vida na cidade regressa à banalidade normal, sem que qualquer um dos habitantes retenha alguma memória dos anos que passou a viver uma realidade alternativa.
Philip K. Dick tem o condão de, através das histórias que conta, tornar acessíveis ideias altamente complexas. No entanto, no contexto deste livro, a simplificação foi talvez excessiva. Se as ideias que estão na base do livro são brilhantes, a escrita do livro releva-nos uma prosa apressada. Barton descobre tudo muito rápidamente. As personagens do livro interagem à velocidade do fast forward, e todo o enredo se desenrola demasiado depressa.
O livro aborda de uma forma fascinante questões tradicionais no trabalho do escritor. No fim de contas, o que é a realidade? Podemos confiar na soma das nossas percepções? Como sabemos que o que estamos a percepcionar não sofreu qualquer distorção? Será a nossa realidade, aquela que percepcionamos com a nossa mente, a verdadeira realidade? O que é a verdade? São o tipo de questões que fazem a mente entrar em piruetas mentais e que levam os neurónios a apertarem-se em nós, tentando bloquear o fluir dos pensamentos.
Para compor as dificuldades das premissas em que assenta o livro, Philip K. Dick ainda nos acena com personagens da mitologia Mazdeista, duas antropormofizações das forças que, segundo esta religião, definem o universo através da sua eterna luta - a força construtiva e a força destrutiva, opostas mas inseparáveis, pois são dois aspectos da mesma verdade universal. Esta noção também pertence ao domínio de outras religiões - no hinduísmo, temos a dualidade shiva/krishna, no budismo as duas forças representadas no clássico símbolo do yin/yang e cá pelos nossos lados influencidados pelas mitologias judaico-cristãs com laivos de mitologia grega e egípcia, temos a dualidade bem/mal. O padrão repete-se: duas forças opostas que, entre si, geram a realidade.
(Já que falamos de dualidades, posso sempre dar uma achega para o porquê da coisa: pensem um pouco; direita/esquerda, dia/noite, verão/inverno, homem/mulher, macho/fêmea. Serão esses os padrões que condicionam o nosso pensamento? Como seriam as nossas filosofias e mitologias se esta dualidade não estivesse tão presente na nossa natureza?)