domingo, 20 de novembro de 2005

Laranja Mecânica


IMDB | A Clockwork Orange
A Clockwork Orange
Wikipedia | A Clockwork Orange

Começa de forma inocente. Quatro jovens amigos começam a sua noite no Moloko, a beber uns copinhos de leite antes de seguirem os seus divertimentos pela noite fora. Mas o leite não é puro - é leite aditivado com estimulantes e psicotrópicos. Os divertimentos não são inocentes - são uma regular orgia de espancamentos, assaltos e violações. E os quatro amigos são liderados por um perigoso sociopata, Alex the Large, um adolescente hiper-violento com um gosto pronunciado pela nona sinfonia de Beethoven.

As noites deste alegre grupo de amigos desenrolam-se sempre da mesma maneira: um copinho de leite, uns raids às casas da vizinhança para assaltos e violações domésticas, espancamentos aos vagabundos que dormem nas ruas, roubo de automóveis, rixas com bandos rivais, e mais um copinho de leite antes de se dirigirem ao amanhecer para os apartamentos dos pais em ultra-modernos bairros de arranha-céus brutalistas. Impecável no seu fato branco, botas pretas e chapéu de coco preto, completo com uma bengala que esconde uma faca bem afiada, Alex é o sociopata que lidera este grupo, um de entre muitos que percorre a noite nos novos bairros de arranha-céus londrinos nas noites do futuro. Alex é fácilmente reconhecível pelas suas insígnias de líder: um sangrento olho de plástico no punho e pestanas falsas a exagerarem o ar psicótico de um dos seus olhos.

Todos os grandes líderes têm o seu momento de queda, e Alex não é excepção. No decorrer de mais um banal assalto violento, Alex assassina uma mulher (numa bizarra cena em que Alex a espanca com um pénis gigante de porcelana) e é traído pelos companheiros. Preso, sofre todas as consequências de ter sido apanhado pelo longo e desdenhoso braço da lei. É espancado, e o assistente social que trata do seu caso cospe-lhe em cima, após declarar que Alex é um caso perdido. Alex é encerrado numa clássica prisão britânica, onde se metamorfoseia num prisioneiro modelo. Estudioso aplicado da Bíblia, é apadrinhado pelo capelão da prisão, um empedernido padre comunista apostado no trabalho sem esperança que é regenerar com a palavra de deus e uma inabalável crença na alma humana o espírito de criminosos empedernidos. Exteriormente, Alex revela todos os sinais de se regenerar, mas a sua mente não mudou. Alex é violento por natureza; os seus sonhos são povoados por imagens de atrocidades sangrentas ao som da nona sinfonia de Beethoven.



Um novo programa experimental de tratamento psiquiátrico promete a libertação antecipada de Alex, curado das suas pulsões violentas. Falamos aqui do programa Ludovico, uma cura potencial para a criminalidade violenta a que Alex adere como paciente experimental. É aqui que o filme atinge o ponto de viragem. Através da aplicação do procedimento, uma mistura de injecções de drogas desconhecidas com brutais sessões de condicionamento psicológico (as célebres cenas em que Alex, de olhos permanentemente abertos graças a um dispositivo colocado na cabeça, é obrigado a assistir a cenas brutais de crimes e guerra enquanto ouve a nona sinfonia de Beethoven), é aparentemente curado. -Aparentemente, pois o processo não cura. Alex continua com as suas pulsões violentas. Continua a reagir de forma violenta quando confrontado. A visão de uma mulher nua dá-lhe logo vontade de a violar nesse preciso momento. Apenas não consegue agir de acordo com os seus desejos; mal os sente, é avassaldo por violentas convulsões que o deixam próximo da inconsciência. Para piorar, também já não consegue ouvir a música do seu adorado Ludwig Van Beethoven - quando a ouve, entra em convulsões horríveis que o deixam estatelado no chão a contorcer-se de dores.

O processo Ludovico é adoptado com entusiasmo por um governo apostado em limpar as prisões de prisioneiros de delito comum para criar espaço para presos políticos.

Uma vez "curado" e libertado, Alex completa a sua descida aos infernos. Regressa a casa apenas para ser expulso pelos pais, que antes o temiam e agora o desprezam. Na rua, é assaltado e espancado pelos vagabundos de que antes Alex era o predador temido. E para piorar a situação, descobre que os seus antigos companheiros se haviam tornado… membros da digníssima força policial, especialistas a espancar dissidentes e crminosos de rua em nome de um governo que afirma restaurar a lei e a ordem.
Alex percorre um cículo completo. Desde o seu ponto alto inicial, em que numa noite banal acaba por invadir uma casa isolada nos subúrbios onde viola a dona da casa e deixa o seu marido paraplégico, Alex é apanhado pela espiral de violência, é punido e é curado. Liberto dos seus impulsos violentos, ou antes, reprimido desses impulsos pelo tratamento, Alex transforma-se de predador em presa, e os fantasmas do passado voltam para o atormentar - em tormentos muito físicos. Espancado quase até à morte pelos seus antigos compinchas, Alex procura refúgio numa casa dos subúrbios, perversamente a mesma casa em que havia cometido actos de violência indescritível no seu momento de glória. É paradoxalmente acolhido pela sua antiga vítima, um escritor dissidente que luta contra a nova ordem social governamental e decide utilizar Alex na campanha contra o governo. Este escritor, confinado a uma cadeira de rodas, reconhece em Alex o líder dos rapazes brutais que anos antes lhe tinham violado a mulher (que posteriormente viria a falecer), destruído a casa e o espancaram. Executa assim uma vingança digna de Maquiavel: era preciso expor ao público as perigosas consequências do bem sucedido programa governamental de controle de crimes. Obriga Alex a ouvir a nona sinfonia de Beethoven, e este, em desespero, tenta suicidar-se, transformando-se assim num mártir social.

Alex acorda no hospital, curado (ou seja, perfeitamente capaz de ser violento) e apaparicado pelos ministros que o haviam condenado.

Baseado na obra homónima de Alexander Burgess, Laranja Mecânica é um dos mais delirantes filmes realizados por Stanley Kubrick. Filmado com uma precisão assassina, delirante no conteúdo e nas situações que retrata, é uma sátira futurista ao nosso culto da violência enquanto forma de purificação social dos nossos impulsos animais. Laranja Mecânica não é um filme fácil de digerir. Está cheio de violência gratuita e gráfica, não escondendo nada dos olhos do espectador. Passa-se numa Inglaterra futura, uma inglaterra onde os jovens falam um dialecto que mistura cockney e russo e vivem no meio de arranha céus modernistas e brutalistas. A arquitectura que os rodeia é fria e impessoal, tão fria e impessoal como a sociedade que os rodeia. A sociedade encontra-se irremdiávelmente corrompida, e não oferece esperança de redenção. Em todo o filme, o únco personagem verdadeiramente honesto é o capelão da prisão, com a sua fé inabalável no livre arbítrio e na capaciade de escolher livremente os caminhos da vida. Todos os outros são hipócritas corruptos que tentam sobreviver rapinando os recursos sociais que os rodeiam. O assistente social que apoia Alex está mais interessado em seduzi-lo do que regenerá-lo. A polícia não passa de um mero instrumento: ineficaz nos momentos de glória de Alex, brutal e ditatorial na caça a dissidentes sob um novo governo. A prisão não regenera, antes é um meio de fermentar o espírito criminal. Os cientistas e psicólogos que trabalham para o governo são amorais, perfeitamente conscientes de que estão a transformar homens em criaturas sem vontade nem alma . Os opositores ao governo apenas estão interessados em chegar ao poder, não hesitando para isso em sacrificar Alex enquanto se lamentam pelo triste destino do rapaz. O governo revela-se igualmente agarrado ao poder, não hesitando em abraçar Alex para melhorar a sua imagem pública. Alex é o anti-herói, louco psicopata cujo amor à violência o tornaram no mais icónico personagem de Kubrick.

O filme não oferece redenção, não oferece um final feliz. Antes deixa-nos a pensar nos nossos sistemas sociais e na hipocrisia inerente à retórica que os sustenta.