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Michel Houellebecq, As Partículas Elementares, Temas e Debates, 2000
O livro é devastador. Após a leitura de As Partículas Elementares, devastador foi a palavra que me pareceu mais adequada para descrever o livro.
Tomei contacto com Houellebecq através de uma entrevista ao LA Times. Bem, chamar-lhe entrevista é um exagero. Metade do texto contextualiza a obra de Houellebecq, e o resto do texto tenta descrever uma impossível entrevista colectiva entre um autor levemente alheado e possívelmente embriagado com um grupo de jornalistas que intimamente se preocupava mais com qual de entre eles poderia passar mais tempo com o homem, e assim publicar um artigo melhor. Mas algumas das frases-pérola de Houellebecq fascinaram-me, bem como as descrições sobre a truculência literária do autor - um verdadeiro terror das belas letras francesas. Quando li sobre as opiniões de Hoellebecq, perfeitamente demolidoras no contexto de uma tranquila intelectualidade liberal e políticamente correcta, decidi que tinha de tentar ler Houellebecq. Digamos que um homem que diz tudo aquilo que pensamos sobre o islão, mas poucos se atrevem a dizer, ou que considera o povo brasileiro um bando de imbecis que só se dedica ao futebol e à fórmula um, merece ser lido nem que seja para se perceber se as frases são contextualizadas ou não. Para além disso, a dizer o que diz do islão, Houellebecq ainda se arrisca a uma fatwa. Sendo Houellebecq tão truculento para com o islão como para o estado e o povo francês, duvido que o protegessem como a Salman Rushdie. A leitura póstuma de obras de enfants-terribles nunca é tão divertida como poderia ser com eles vivos, e prontos a elaborar mais uma frase provocadora ou ideia incorrecta.
Escritores malditos sempre foram um víciozinho meu. Desde que descobri a Trilogia da Rosa-Crucificação de Henry Miller, que fiquei perdidamente atraído pelos escritores que se dedicam a perscrutar o que de mais fundo vai na alma humana. A Trilogia da Rosa-Crucificação, para referência, é constituída pelos clássicos da literatura do século XX que são o Sexus, Plexus e Nexus. Miller também foi o autor dos Trópico de Capricórnio e Trópico de Cancer, entre outras obras censuradas e de publicação proibida. E se Miller é olhado como o escritor do sexo, devido às suas fielmente exageradas descrições das suas aventuras sexuais, ele revela-se como autor quando deixa as palavras voar sobre a página, numa forma de escrita auto-associativa onde as ideias se confrontam sem um nexo previsto, num divagar que reflecte fielmente a alma humana. Outros autores malditos incluem sem dúvida o divino Marquês de Sade, autor de alguns dos mais revoltantes livros da história da literatura (com passagens capazes de criar acrobacias no mais tranquilo dos estômagos), H. P. Lovecraft, William Burroughs, Lautreámont ou J. G. Ballard, falando apenas dos que conheço. Pode parecer estranho colocar no mesmo saco Burroughs, o apologista das alunicações e da literatura cut-paste, Lovecraft, o gótico entrelaçador de histórias sobre tenebrosos deuses de além-espaço, ou Ballard, criador de pequenas jóias do conto de Ficção Científica e autor de livros provocantes como The Atrocity Exibition (que nenhum editor português certamente terá tomates para editar) ou o Crash, tornado famoso pelo filme homónimo de Cronenberg. Na verdade, todos têm em comum uma prosa própria, em que as palavras são cirúrgicamente forçadas à sangrenta dureza das ideias, e uma vontade de chocar os leitores com os abismos da alma humana.
(De Lautréamont só falei para deixar a certeza aos possíveis leitores deste post que não sou nenhum especialista, antes sou um perfeito pedante capaz de citar autores que nunca leu para definir uma ideia aberrante. Mas ainda não perdi a esperança de ler Os Cantos de Maldoror.)
Houellebecq não escreve sobre o caos rastejante, mas descreve com uma precisão cirúrgica e uma lucidez arrebatadora o vazio humano em que a sociedade do final do século XX se transformou. Pela leitura de Houellebecq, os espaços tecnológicamente avançados nos quais coexistimos disfarçam mal um completo vazio da alma. Houellebecq está a apontar os pés de barro do maior colosso imperial da história, o império da razão, da indústria e do desenvolvimento tecnológico que carateriza o nosso mundo ocidental, possívelmente o pináculo civilizacional da história da humanidade. Ao tentar transcender a humanidade, tornamo-nos desumanos. Mas como da humanidade nunca nos libertamos, tornamo-nos frios, insensíveis, apáticos e frustrados.
Houellebecq, para seu crédito, não aponta alternativas. As alternativas possíveis da religião e da espiritualidade são demolidas por Houellebecq como parvoíces monumentais.
De que trata, então, As Partículas Elementares? As Partículas Elementares traçam o trajcto de duas personagens, dois meios-irmãos, que em conjunto representam uma caricatura das duas grandes atitudes que nos caracterizam como elementos das sociedades contemporâneas: o hedonismo e a busca cega de prazer, e a absoluta insensibilidade da razão pura. O que une, ténuamente, os dois irmãos é serem filhos de uma mesma mãe, uma mãe que os abandonou para procurar a vida e a iluminação interior em todas as modas e caprichos dos anos sessenta em diante. Bruno, o hedonista, teve uma infância brutal, com uma passagem por um colégo interno onde aprendeu as aplicações da mais pura lei darwinista, a lei do mais fraco. O resto da sua via é um ror de relações frustradas e do uso do sexo como substituo para a incapacidade de estabelecer relações profundas. Incapaz de se aproximar de alguém, Bruno recorre ao voyeurismo e à masturbação para satisfazer os seus desejos, que são no fundo o desejo de se aproximar de alguém. Quando o consegue, algo corre mal, e aos quarenta anos Bruno é um homem amargo e desiludido, que se refugia no seu ódio para suportar uma vida que odeia. O seu hedonismo leva-o a experimentar um pouco de tudo, desde a masturbação em locais público ao assédio a alunas (Bruno é um ex-professor de liceu, afastado para trabalhar no ministério da educação após um esgotamento nervoso que envolveu o seu assédio a uma aluna àrabe particularmente desejável). Curiosamente, encontra uma mulher que o compreende, aos seus desejos e frustrações, na figura de uma professora quarentona que frequenta um campo de nudistas. Houellebecq, terrível, não deixa o seu personagem viver mais do que uns instantes de felicidade, matando esta personagem no momento em que Bruno poderia refazer a sua vida (negando-nos assim um final feliz). A vida é madrasta e a ficção também, parece dizer-nos, implacável, o autor. Bruno terminará os seus dias num hospício.
Michel, a outra face da moeda, é o tipo de pessoa que vive contente no seu pequeno mundo de ciência pura e produtos comprados no supermercado do bairro. Michel é incapaz de sentir qualquer afecto por outro ser humano, incapacidade comprovada pelo longo amor que lhe é dedicado por Annabelle, amiga de infância, que acaba por desistir de Michel perante o longo silêncio e alheamento deste. Aos quarenta anos, Michel sente-se vazio, e acaba por desistir da sua posição de prestigiado investigador no mundo dos laboratórios científicos estatais franceses. Michel percebe que apesar de todo o seu prestígio, não está realmente a fazer ciência, mas sim a desempenhar uma função rotineira. Após um longo período de reflexão, em que se cruza com o meio irmão em rota de decadência final e enfrenta friamente o falecimento da mãe ausente, num retiro espiritual povoado por hippies envelhecidos e imbecis fanáticos da espiritualidade new age, Michel regressa à investigação, saindo de França, onde lhe é impossível trabalhar, para desenvolver novos estudos na Irlanda (um momento sintomático do livro, da parte de um autor que após publicar os primeiros livros também se exilou na Irlanda). Num toque curioso de ficção científica cyberpunk (sei que a conexão é ténue, mas existe), Houellebecq transporta-nos a um futuro onde as pesquisas de Michel no domínio da genética levaram a humanidade a transcender-se e a ultrapassar a dualidade homem-mulher - o corolário óbvio do trabalho da vida de um homem assexuado, incapaz de amar e de se relacionar a qualquer nível que não o intelectual. Pelo meio, Michel ainda reencontra Annabelle, aos quarenta anos uma bibliotecária amargurada e solitária. Tentam reviver o amor, descobrindo Michel que para ele o mais importante era o simples contacto, e não o sexo. Ao tentarem ter um filho, ideia de Annabelle, sabendo de antemão que aquele amor renovado era um momento passageiro, porque a vida tinha já deixado demasiadas marcas, esta descobre que tem cancro e suicida-se, incapaz de aceitar a longa decadência da doença. Assim termina o momento em que Michel mais se aproxima da humanidade.
Diga-se de passagem que Houellebecq é implacável para com as mulheres. Tudo de mal lhes sucede. São atraiçoadas, injustiçadas e vulgarizadas, e terminam sempre a sua vida com uma patética morte solitária e prematura. Um conflito interior da parte de um homem que, de acordo com a sua biografia, foi abandonado por uma mãe mulher de carreira para ser criado com uma avó? O ódio que repassa das páginas dos seus livros não é totalmente fictício.
Não há redenção para qualquer dos personagens. Apenas uma longa e amarga caminhada por um destino traçado em direcção a uma decadência solitária.
Esta deprimente história é temperada pelas àcidas observações de Houellebecq. O autor zurze certeiramente a torto e a direito, não poupando qualquer ideal ou instituição. Trata os negros como nada menos que babuínos repletos de energia sexual; os brasileiros, numa observação de Bruno perante a moda das férias no brasil, não passam de idiotas chapados que só se interessam por futebol; as instituições científicas existem apenas para se auto-perpetuar, e os cientistas realizam trabalhos capazes de serem efectuados por estudantes de liceu. O maio de 68 não passou de uma idiotice; os hippies, a geração de 60, não passam de uns perfeitos paspalhos; o amor livre obedece exactamente às mesmas regras do amor convencional - se és bonito, papas todas as mulheres que queres, se és feio, masturbas-te. Toda a ideologia espiritualista de gurus em contacto com o interior filosófico não passa de patranhas destinadas a assegurar uma reserva de raparigas jovens para saciar os desejos eróticos de velhos lúbricos que se valem do seu estatuto para sugar dinheiro. E continua... Houellebecq é duro e implacável, as suas opiniões chegaram a valer-lhe a expulsão do grupo de discussão literária que ele próprio fundou. Só por esse fait-divers se percebe o alcance das opiniões de Houellebecq, e a forma como elas ofendem a torto e a direito toda a sociedade. Revolta os mais tolerantes e liberais, o que é uma façanha prodigiosa.
Desta forma, Houellebecq dá voz aos nossos pensamentos mais inconfessáveis e secretos. Torna-se assim impossível não reagir ao livro As Partículas Elementares. Gosta-se, ou não se gosta. Não há meios termos. E mesmo que se goste do livro, assusta a identificação que pode ser feita entre o leitor, um clássico cidadão europeu da classe média, e as caricaturas degeneradas de clássicos cidadãos europeus da classe média que Houellebecq retrata. Isso é, talvez, o mais assustador em As Partículas Elementares: perceber que ao entrar dentro da vida do livro, ao entranhar no modo de vida e forma de pensar das personagens, ao identificar-nos com as personagens, estamo-nos a ver frente a um espelho limpo de distorções, e vemos a realidade em que vivemos tal como ela é. Patética e deprimente. Fechamos o livro e essa impressão atenua-se, mas o bichinho fica cá. Depois de ler As Partículas Elementares, nunca mais conseguiremos olhar com os mesmos olhos para os rituais de vida no ecossistema que é a classe média europeia.
As Partículas Elementares é um livro para leitores de mente reforçada e estômago forte. A maioria das pessoas tende a considerar chocante a simples exposição à violência. Para essas pessoas, filmes de acção onde tudo decorre a murro e a pontapé são ofensivos; e uma obra como o livro American Psycho, de Brett Easton Ellis é de impensável leitura, com todas aquelas descrições de actos de tortura terminal descritas num livro que é uma viagem à mente de um psicopata. As pessoas vêem esses filmes, lêem os livros, ao mesmo tempo fascinandas e horrorizadas com a violência apresentada. Mas a violência, se é óbvia, torna-se ineficaz. Muito mais aterrorizante é a sugestão de violência, ou a violência psicológica. Aqui, o horror passa-se todo na mente do espectador. As Partículas Elementares pouco têm a ver com a violência corriqueira dos filmes de porrada neles e as estórias lúridas de escândalos sangrento-sexuais que deleitam aqueles que mais se pronunciam contra esta violência. Antes de mais, As Partículas Elementares é um livro que aterroriza, ao expor e desmistificar a hipocrisia presente no ideário social da europa moderna do século XX. De forma insidiosa, confrontando-nos por vezes com imagens e ideários assustadores, leva-nos a questionar toda a nossa base civilizacional. Talvez seja este aspecto que leva a considerar As Partículas Elementares, agora citando a contra-capa do livro, como "o balanço apocalíptico da revolução social e dos costumes da segunda metade do século" e "romance sobre o suicído do ocidente".
Anos após todas as revoluções e ideiais libertários que convulsionaram as sociedades ocidentais, verifica Houellebecq que todo o fervilhar de ideias apenas gerou paisagens desérticas ocupadas por símbolos de luxo. Aqui, e na forma de escrever, Houellebecq partilha com J. G. Ballard uma visão apocalíptica das sociedades modernas. È preciso ler, por exemplo, o Crash, com a sua visão erótico-paranóica das relações humanas mediadas pelo automóvel e vividas nos espaços desolados da arquitectura racional brutalista, ou o Highrise, em que a vida de um condomínio de apartamentos se transforma numa metáfora para a anarquia da desagregação social. Após estas leituras, percebe-se que esta desilusão para com a maneira de viver à qual estamos, no fundo, manietados, já tem raízes profundas (Crash data já dos anos 70). Mas se em J. G. Ballard, seguindo a tradição anglo-saxónica do contar histórias, é no cenário, no mundo em que ele coloca as personagens, que se nota a desolação física e moral do final do século XX, fértil em arranha-céus, edifícios de apartamentos, auto-estradas e vias rápidas congestionadas por carros potentes mas vazia de conteúdos e emoções, em Houellebecq a desolação é interior, no mais fundo da alma do ser humano.
Isso torna Houellebecq profundamente assustador. Não há redenção, parece dizer-nos. Não há esperança nem redenção, só uma crescente decadência em espiral que só termina com a morte.