segunda-feira, 18 de julho de 2005

A Criação de Haydn

Franz Joseph Haydn 1732-1809
Milton | Paradise Lost


Caríssimo Blog:

Ontem fui agradávelmente surpreendido pelo concerto da Orquestra Sinfónica Juvenil e do Coro de Linda -a-Velha na basílica do convento de Mafra. Tocaram a oratória A Criação de Joseph Haydn, obra criada a partir do poema Paradise Lost de Milton - um texto seminal da literatura do século XVIII, que conta a história da criação do ponto de vista do anjo caído. Uma obra revolucionária, pois olha para Lúcifer não como um demónio horrendo mas sim como uma alma superior, caída em desgraça devido ao seu orgulho.

Foi um momento de genial sensualidade musical, impecávelmente interpretado. Ouvir os sons românticos da oratória no ambiente luxuriante da basílica barroca, com o seu horror vacua no preenchimento de espaços, com todas as volutas e arquitraves, colunas e colunelas, estatuária de panejamentos esvoaçantes, debaixo da abóboda da basílica, foi um prazer adicional. Pelos momentos em que durou o concerto, outras épocas passaram, como se viagem no tempo fosse, um regresso a um passado inatingível. Certamente que os fantasmas de monges e aristocratas pararam um pouco as suas deambulações assombradoras e ficara ouvir, a recordar outros tempos que foram os seus.

Nas àguas transparentes lança-se o peixe,
enroscando-se em volta, num tumulto sem fim.
Das profundezas do mar revolve-se
Leviathan, sobre as vagas espumantes


Já estou a divagar, caríssimo blog, e quando isso acontece, começo a escrever mal. As combinações mais patéticas de palavras surgem-me na ponta dos dedos.

Como crítica possível à iniciativa da Câmara de Mafra de incluir estes concertos de música clássica gratuitos na programação das noites da cigarra (animação cultural nas noites de verão) poderia apontar o reportório tocado. Sabendo que a música clássica, apesar de importante, não é especialmente divulgada, este tipo de iniciativa deveria apostar num reportório mais acessível, tocando obras conhecidas, para atrair novos públicos. Na verdade, para quem não conhece música clássica, saltar logo para uma sinfonia de Haydn é uma experiência difícil. Os concertos programados apelam a uma audiência conhecedora, não a una audiência generalista. Não está em dúvida a qualidade dos intérpretes, nem a qualidade dos concertos. Só questiono a escolha de públicos. Depois queixem-se que ninguém vai ver concertos clássicos, que são sempre os mesmos elitistas que vão ouvir as orquestras e os quartetos de cordas. Enquanto houver este fosso entre o grande público e o veradeiro pináculo de beleza e excelência que é a música erudita, não se resolve o problema que é o desconhecimento de obras de grande beleza por parte de um público que, por entender a música erudita como inacessível e elitista, perde assim oportunidade de descobrir obras de uma beleza de tirar o fôlego.

Se bem que, caríssimo blog, o fosso entre artes e públicos em portugal não se restringe à música. O que é que vende mais, a grande literatura ou aqueles livrinhos de literatura light, com capas cor de rosa e histórias cor de rosa?


Mal posso esperar pelo próximo concerto, agora do Coro Gulbenkien, que nos vai dar uma lição de história de música portuguesa. Só espero que a direcção da fundação Gulbenkien não faça ao coro o mesmo que fez à companhia de dança...