terça-feira, 19 de julho de 2005

Night of the Living Dead



Danse Macabre Iconography
Totentanz | Danse Macabre
Projecto Vercial | Noivado do Sepulcro | Soares dos Passos (1856)
Wikipedia | Ars Moriendi
IMDB | Night of the Living Dead (1968)
IMDB | Night of the Living Dead (1990)

O mais clássico filme de terror sub-género zombie foi realizado nos finais dos anos 60 por George Romero, guru do género cinematográfico. A Noite dos Mortos-Vivos é um filme aterrorizante, filmado num belíssimo preto e branco, com a banda sonora típica de um clássico filme de série B. A história é simples e resume-se em poucas linhas: um grupo desesperado tenta sobreviver numa quinta isolada aos constantes ataques dos mortos-vivos. O grupo desagrega-se, não é capaz de resistir ao terror e à ignorância paralizante. Os mortos-vivos, com o benefício de utilizarem o cérebro apenas para procurar comida, acabam por aniquilar os sobreviventes no final da hora e meia de filme.



Mas não é desse filme que quero falar. Quero falar do remake feito nos anos oitenta. Agora a cores, e dirigido (segundo sugestão do próprio Romero) pelo especialista em efeitos especiais gore Tom Savini, A Noite dos Mortos-Vivos dá-nos a cores, com mais pormenores, os medos e os terrores sugeridos no primeiro filme. Se no primeiro filme os zombies eram pessoas esbranquiçadas que se moviam lentamente de olhar perdido, neste remake os zombies continuam a ser pessoas que se movem lentamente de olhar perdido, mas agora com um aspecto verdadeiramente decomposto. A atenção dos peritos em efeitos especiais virou-se para os estudos forenses e autópsias, o que significa que os zombies são anatómicamente correctos nas suas equimoses, pele ensanguentada, feridas abertas e fracturas expostas. A tónica ideológica do filme também se altera - se o original A Noite dos Mortos-Vivos é um clássico do cinema de terror, com um grupo de pessoas a ser aniquilada por ameaças obscuras (e é esse o âmago de qualquer história de terror, o medo sufocante do desconhecido que nos aniquila), os restantes filmes da trilogia - Zombie: O Renascer dos Mortos Vivos e Dia dos Mortos-Vivos já são filmes que retratam a desagregação da sociedade perante a pressão e ameaça dos mortos-vivos, que aqui simbolizam terrores mais políticos. Consumo desenfreado, atitudes perante os vietnamitas durante a guerra do vietname, a fragilidade da sociedade, que entra em colapso perante a pressão exterior, e a barbárie em que os grupos de humanos decaem quando a anarquia reina - ideias preconizadas nos filmes de zombies que se tornaram dolorosamente reais na guerra da jugoeslávia.



Perante o filme de zombies, o zombie também representa a problemática sempre ameaçadora do outro. A problemática do outro? Esta é profunda.

Nós pensamos que um filme sobre zombies é um filme ridículo - mortos vivos, a arrastarem-se pelas ruas e a devorarem pessoas como nós? Absurdo. Mas ao olhar para os bairros sociais, para as minorias ciganas e africanas, para a emigração do leste, qual é a nossa reacção? Consideramos estes outros criaturas desprovidas de sentimentos, diferentes de nós, que vêm até cá devorar o nosso modo de vida. O racismo e a xenofobia são reacções viscerais. Comparem as imagens do arrastão de carcavelos com cenas clássicas de qualquer filme de zombies, com os mortos vivos a atacarem pessoas incautas?

Ou pensem na forma como olhamos para os chineses, essa massa humana de indivíduos indistinguíveis apostada em conquistar o mundo ocidental?

Pode parecer estranho, mas na realidade o cinema gore é um subgénero de culto bem sucedido. Porquê, então esta fascinação e esta apelatividade deste género cinematográfico, à primeira vista pouco importante (falo não só por mim, mas também por todos os viciados nas imagens de cadáveres putrefactos a devorarem intestinos e partes de corpos humanos)? O que é que nos leva a ver estes filmes, e a gostar?

Pergunto-me se há algum paralelo entre o cinema de terror gore, com as suas gráficas representações de cadáveres reanimados determinados em destruir os vivos e as representações macabras da idade média - as ars moriendi, as danças da morte. Tentará o cinema gore responder àquele apelo do nosso lado obscuro? Não esqueçamos que a nossa relação com a morte como algo sanitizado e evitável é recente. Nos séculos XVII e XVIII, uma moda recorrente nos salões aristocráticos era o estudo da anatomia - com dissecação de cadáveres. No século XIX, o fascínio do sepulcro, o apelo da morte, e a obsessão pelo suícido eram obsessão epidémica nas classes literatas - claramente, Werther, os contos de Edgar Allan Poe, Drácula e o bem português Noivado do Sepulcro não são obras isoladas no contexto artístico da época. E quanto ao fascínio macabro de mutilações sangrentas que é o que caracteriza o género gore, também não nos podemos esquecer que a pena de morte, como punição pública acompanhada de tortura, foi um espectáculo público regular até ao século XIX. A tranquila praça do comércio, em Lisboa, foi palco de horrendos espectáculos cortesia da inquisição. A revolução francesa tornou-se famosa pelas representações fatais no palco da guilhotina, com as famosas tricotteuses - as mulheres que faziam tricot enquanto os aristocratas eram decapitados. Ver a morte, nos seus aspectos mais revoltantes, era um espectáculo que atraía multidões, nos tempos antigos, sancionado pelas autoridades tanto pelos seus aspectos pedagógicos (ver o inimigo público a ser esquartejado, esfolado, lapidado, enforcado, queimado, garrotado, ou qualquer outro suplício criativo dos tempos antigos, não nos dá muita vontade de nos tornar-mos inimigos públicos) tanto por funcionar como válvula de escape para os instintos violentos da populaça.



Hoje esse tipo de condenáveis espectáculos são impossíveis, e felizmente. Sempre que me dizem que a sociedade não progride, que hoje são tempos mais inseguros do que antigamente, lembro-me sempre das gravuras da praça do comércio iluminada pelas fogueiras da inquisição. Mas o instinto anda por cá, dentro de nós, e é alimentado por uma comunicação social viciada em histórias de criminalidade, em lendas urbanas sobre filmes snuff e pelos filmes violentos (não estou a falar dos filmes gore, esses são inofensivos na sua obesseção por carne e tripas) povoados por heróis musculados que eliminam os seus inimigos com um máximo de estragos, explosões e tiroteios.

Só tenho uma pergunta: Land of the Dead, o último filme do Mestre George Romero, chegará a estrear em portugal? E senão, quando é que sairá em DVD?