sexta-feira, 3 de junho de 2005

Ópera, Cinema e Jogos 3D

Durante séculos, com o modo de vida de baixa tecnologia que caracterizou as nossas sociedades, a ópera era a mais completa forma de entretenimento. A ópera era um espectáculo único, um ponto de encontro de várias artes, cuja função era entreter, fascinar e apaixonar. Na sua época àurea, a ópera era considerada um pináculo artístico, uma arte total que reunia a literatura, a música, o teatro e as artes visuais na criação de espectáculos estonteantes de música, representação e cor.

A imagem que nos resta da ópera é a de superproduções que reuniam num mesmo palco cenários elaborados, cantores líricos capazes de representar librettos elaborados e música arrebatadora, cantada pelos actores, e tocada por orquestras de dezenas de músicos. Hoje, a ópera é considerada elitista, destinada ao consumo por parte de uma elite de apreciadores de música clássica. Mas, nos seus tempos àureos, era um entretenimento de massas, e a estreia de uma nova ópera gerava as mesmas curiosidades e ansiedades que hoje associamos à estreia de uma megaprodução cinematográfica.

Todos iam à ópera, todos se sentiam arrebatados pela conjugação artística de uma arte total. Havia óperas para todos os gostos, de todos os géneros, desde as grandes óperas épicas (como a Nabucco de Verdi) às operetas de entretenimento rápido (como a HMS Pinafore, de Gilbert e Sullivan). O compositor de ópera era visto como um super artista, acima dos seus congéneres das várias artes pela capacidade de conjugar as várias artes para a criação do espectáculo operático. Hoje, a ópera caiu em desuso - ainda é representada, e ainda se compõem novas óperas, mas o apelo ao grande público está perdido.

O que é perfeitamente natural, tendo em conta que os desenvolvimentos tecnológicos do século XX nos deram uma nova forma de arte total, um espectáculo único que conjuga as contribuições da literatura, da música e das artes visuais, orquestrada por figuras idiossincráticas que se assumem como super artistas, condutores de homens, de ideias e artes que gerem a criação de obras… bem, operáticas é um adjectivo que lhes assenta bem. Falo, claro, das megaproduções cinematográficas. São elas as óperas do século XX. A emoção e as intenções estilísticas do contar elaborado de histórias que entretêm, fascinam e apaixonam presentes numa superprodução de cinema são as mesmas emoções e ideiais que a ópera contém; apenas mudou o medium de expressão, e o suporte tecnológico necessário para a apreciação da obra final.

Os grandes filmes, os blockbusters, filmes de sucesso garantido carregados de esplendorosos efeitos especiais, onde o som e a imagem se conjugam de formas por vezes inovadoras, por vezes clássicas, são obras de arte total cuja produção, a cargo (conduzida) por um só artista, obriga à gestão dos trabalhos de milhares de pessoas, desde os actores aos músicos, aos técnicos de cenários e aos técnicos de efeitos especiais. Sempre que estreia uma nova superprodução, o público agita-se, curioso, e na maior parte das estreias o pormenor que é salientado como o factor que nos obrigará a ver o filme é a utilização de efeitos especiais cada vez mais espectaculares.

Pode parecer desprestigiante, este desvalorizar do contar histórias, este esquecer do conteúdo para favorecer a imagem, mas também, quem é que ia à ópera por causa das histórias que estas contavam? Na ópera, a música e a mise en scéne eram o que mais se salientava. Hoje, são os efeitos especiais e a mise en scéne o que mais se salienta.

É habitual considerar-se a ópera uma arte superior, enquanto o cinema vai oscilando entre arte e artesanato comercial. Pessoalmente, não consigo ver essa diferença - o paralelo entre estas duas artes é nítido. São aspectos diferentes de expressar e entreter as mesmas ideias. E não duvido que as gerações futuras contemplem um filme dos que hoje enchem cinemas, cheio de efeitos especiais, com a mesma reverência com que hoje contemplamos a ópera.

Neste dealbar do século XXI, estamos a viver uma época de ouro digital. A revolução informática já chegou. Já viu e venceu, e nós estamos inundados de equipamentos digitais sem os quais já não saberíamos viver. O computador passou de um "bicho" assustador e distante para um objecto quase ubíquo no nosso quotidiano. Vivemos rodeados de telemóveis, computadores, redes de comunicação, enfim, todos os milhentos obejctos que fazem este milagre digital. A revolução informática - há quem lhe chame a terceira revolução industrial possibilitou o nascimento de novas economias, novas profissões, inimagináveis nas décadas que antecederam a explosão dos microprocessadores.

Mas o que é que isto tem a ver com a ópera? É claro que o computador revolucionou o cinema - desde os efeitos especiais às câmeras, e até à própria película - cada vez mais se fala num cinema digital. Mas gostaria de olhar com um pouco mais de atenção para um componente desvalorizado (mas não por isso pouco lucrativo) das novas tecnologias. Falo dos jogos de computador.

Os primeiros jogos de computador (ou videojogos, como prefiram), eram ridículamente insignificantes. A primeira consola vendida no mundo só permitia um jogo, e esse jogo consistia no controlar da trajectória de um ponto no ecran… era o clássico Pong. Durante anos, o que era visualmente mais apelativo num jogo de computador era a caixa onde vinham as diskettes (e, mais recentemente, os cds). Isso não impediu que os jogos se tornassem experiências imersivas, capazes de nos fazer entrar em mundos virtuais de pixeis e linhas de código.

Os passos de gigante dados pelo desenvolvimento tecnológico permitem, hoje em dia, criar jogos cujo ambiente gráfico é detalhado ao mais ínfime detalhe com pormenores ultra-realistas. Se ainda temos aquela fantasia de que um jogo de computador era criado nos tempos livres por um ou dois jovens programadadores dedicados, desenganemo-nos. O tempo de criação de um videojogo anda pelos anos, e o nível de complexidade gráfica, sonora e até mesmo literária é agora elevadíssimo. Os jogos iplicam grandes investimentos, e um forte trabalho de equipes de programadores, artistas gráficos, escritores e músicos. O resultado final são ambientes de jogo imersivos, onde as diferentes artes se conjugaram para criar mundos fantásticos. A indústria dos videojogos já se aproxima, quer em termos de investimentos quer em termos de rendimentos, das somas astronómicas com que lidam os estúdios de cinema.

É o futuro da forma de entretenimento profundo configurada pela ópera e sublinhada pelo cinema. O video jogo está a evoluir para uma experiência cada vez mais imersiva e total. Herdará as complexidades e a vontade de unificar artes num todo distindo e espectacular. E irá responder mais eficazmente à necessidade humana de fugir da realidade e de se refugiar, mesmo que por fugazes momentos, em mundos de fantasia.