Adofo Nunes (2025). Algoritmocracia. Lisboa: D. Quixote.
Sou, por felicidade, um enorme distraído com as figuras públicas portuguesas. Se fosse mais atento não teria pegado neste livro, visto ter vindo das mãos de um ex-líder de um partido conservador de direita, CDS, cujos valores são diametralmente opostos aos meus. E isso teria sido um erro. Diria até que a leitura começa a valer a pena logo pelo prefácio, um belíssimo exercício de fair play político que nos recorda a importância da discussão, do equilíbrio e do respeito entre diferentes visões políticas para uma democracia saudável. Posso discordar das visões políticas do autor. E irrita-me aquela tendência direitista para meter no mesmo saco do extremismo as boçalidades do pior da direita e o progressismo de esquerda, como se houvesse um equivalente moral entre pregar o ódio, o racismo e a imbecilidade generalizada e lutar por maior igualdade social e económica, pela liberdade pessoal e de género. Uns querem um mundo pior para o seu ganho, nós (porque sim, enquadro-me nas esquerdas à esquerda do PS) queremos um mundo melhor para todos. Considerar isto extremismo é preocupante e um sintoma da acintosidade dos discursos públicos, que é o grande tema do livro.
Quando falo de prefácio, note-se que me refiro ao do autor. O livro tem outro, do punho de Paulo Portas, e ler elogios da parte de um dos mais cínicos praticantes da arte da política que temos por cá, já é esticar demasiado os limites da minha tolerância. Estamos a falar de um clássico exemplo de elitismo português, homem de boas famílias e tradicionalista, que não desdenhou descer às feiras e ser lambuzado pelas velhotas do povoléu para conseguir ascender nas escadarias do poder. É o jogo, bem sei, e é alguém que o sabe jogar muito bem.
Este livro é um profundo alerta para problemáticas que já não são crescentes, são enxurradas culturais que estão a erodir profundamente o edifício da democracia liberal ocidental. Sistema que, não sendo o perfeito, é do melhor que temos e tem garantido uma liberdade e prosperidade genralizadas inagualáveis na história humana. O problema aqui identificado, e também por outros autores, está na extremação do discurso público, na incapacidade de encontrar equilíbrio entre diferentes pontos de vista, porque já se parte para as discussões a partir de premissas radicais que se tornaram surdas aos argumentos contrários. Os resultados estão à vista: o crescimento desmedido da extrema direita, novas gerações que se revêm nos valores negativos do masculinismo tóxico, revanchismo cultural, supremacia racial e retirada de direitos. Como é que foi possível chegar até aqui?
Apesar do tema, o autor tem o discernimento de não culpar unicamente a tecnologia por este mau estado do mundo. As tendências, discursos de ódio, descontentamento, egoísmo e falta de sensibilidade para vida em sociedade sempre estiveram connosco, como franja por vezes mal disfarçada. O que a tecnologia veio fazer foi amplificar estes discursos, torná-los mais visiveis, dar-lhes canais que os media tradicionais não permitiam e que os colocam em pé de igualdade com os discursos mais lógicos e factuais. Essa amplificação trouxe o efeito perverso de lhes conferir uma certa aura de legitimidade, de mero ponto de vista divergente em vez de doudice varrida, misoginia profunda ou rebarbadice assumida.
O algoritmo, ou melhor, as diversas ferramentas algorítmicas que as plataformas mediáticas de hoje, as redes sociais, utilizam para determinar os conteúdos com que os seus utilizadores interagem, é o mais forte instrumento de enviesamento e que de certa forma, permite níveis de controle ideológico com que os mais batidos tiranos totalitários do passado nem sequer conseguiriam sonhar atingir. O que vemos quando acedemos a redes sociais, quaisquer que sejam (com a excessão do Fediverso, não analisado neste livro) é mediado por instrumentos automatizados que determinam o que vemos com base na combinação dos nossos interesses, padrões de comportamento e objetivos empresariais. Não é por acaso que nos leva aos extremos, porque mostrar o que choca é a forma mais fácil de nos captar a atenção. E é essa atenção, medida, controlada, mediada por sofisticados algoritmos, que é a base da corrente economia digital, em que nós, ou melhor, os dados providenciados pelos nossos padrões de comportamento, sustentam fluxos financeiros milionários. Não é difícil perceber que estamos a dar cabo da nossa sociedade e sistema político para enriquecer um punhado de techbros.
Este livro fala muito bem destes mecanismos, com muitos exemplos do quanto as bolhas informacionais e mediação algorítmica têm desempenhado um papel fundamental nos extremismos que correm a nossa sociedade democrática. Algo que começa a nível pessoal, através do consumo de conteúdos, mas que acaba por transvasar para a sociedade, quer pelas atitudes públicas individuais quer pela reação de responsáveis políticos e institucionais, que se sentem obrigados ou a investir recursos de desmontagem de desinformação ou a extremar o seu próprio discurso para não arriscar perder eleitorado (e isso é algo que está a ser notório na política portuguesa, da esquerda à direita). Quando mais gritamos os ecos das nossas bolhas, mais nos convencemos da sua veracidade única, e mais nos afastamos da sã convivência social, que admite e necessita de diferentes pontos de vista, mas não sobrevive a guerras entre supostos donos de verdades únicas.
O livro vai mais longe e toca numa questão que por cá anda adormecida, a da soberania digital. Enquanto nos deixamos levar pela enxurrada de reações, likes e visualizações, não reparamos o quanto esta erosão é provocada pelo sentido de lucro de empresas que não estão sediadas no espaço europeu. Sublinha o perigo de, em nome de uma ideia romântica mas falsa de liberdade de expressão, deixarmos à rédea solta empresas cujo modus operandi toca no âmago de qualquer sociedade - a forma como flui a informação. Fartamo-nos de discutir as consequências, conhecemos as causas, mas não nos atrevemos a tocar na raiz do problema. É sempre bom recordar que, mesmo quando falamos de IA, estes algoritmos não são entidades conscientes independentes que agem de moto próprio. São programados e parametrizados a partir de decisões saídas de decisores humanos. Não há ghosts in the machine ou computers that say no. Há pessoas, executivos e gestores de topo ou intermédios, que tomam decisões implementadas nas ferramentas que nos afetam a todos. É toda um novo conceito de eminence grise, sem que haja eminência mas apenas busca pelo lucro máximo. Algortimocracia é um profundo alerta para todas estas questões.
Só apontaria um problema ao livro (e não, não tem a ver com as questões ideológicas, isto não é uma recensão clickbait). Talvez advindo da dupla condição de advocacia e política do autor, o livro é demasido longo e repete muitas vezes os mesmos argumentos, enquanto explora as suas diversas vertentes. Diria que conseguira expor com profundidade os seus argumentos com metade das páginas, e com isso apenas ganharia força. De resto, não tenho dúvidas sobre a importância desta leitura nestes dias onde assistimos ao esboroar da nossa sociedade através da janela do telemóvel.