quinta-feira, 5 de junho de 2025

A Malta das Trincheiras


André Brun (1983). A Malta das Trincheiras. Porto: Livraria Civilização Editora.

Tirando as comemorações anuais da batalha de La Lys, a história do CEP na I Guerra não é muito discutida por cá. Talvez em boa parte por não ser uma história honrosa. Uma jovem república à procura de reconhecimento internacional, desejosa de ombrear com os aliados mas sem reais meios para o fazer, lança um corpo expedicionário com uma preparação duvidosa nas trincheiras da Flandres. O pior chega depois, com os estertores autoritários do sidonismo, e o na prática abandono destes soldados por governos que não os rendiam, encontravam novas forças ou reforçavam os meios. La Lys, embora pintada como um momento de heroísmo, foi a marca do descalabro desta situação, com a posterior incorporação das forças sobreviventes nos comandos ingleses. Não é uma história que embeleze a nossa história do século XX, e como tal fica algo relegada para as discussões mais especializadas e a revisão simplista aquando das efemérides.

O romancista André Brun foi um dos participantes nesta amarga aventura. Comandou uma unidade de infantaria do CEP, sentiu na pele a ação nas trincheiras, acompanhou os seus homens nos ataques e defesa, viveu entre a lama e as balas. É esta a história que nos conta neste livro, que não segue uma estrutura linear romantizada, mas sim se organiza como um conjunto de vinhetas onde Brun regista memórias do que viveu, e testemunhou, na Frente Ocidental.

Brun é nitiadamente patriota e militarista, como se denota nas suas visões da guerra como espaço de honra e coragem, apesar de estar a combater numa guerra caracterizada pelo uso de uma das mais estúpidas táticas de sempre - atirar cargas de homens para invadir trincheiras inimigas, contra o fogo de defesa de metralhadoras. Uma guerra onde os combates depressa chegavam às dezenas e centenas de milhar de baixas em poucos minutos, e cujos generais persistiram neste absurdo desperdício de vidas humanas durante quatro anos. A óbvia incapacidade dos generais, que persisitiram na sua estratégia, não é mais do que aflorada por Brun, alguém que esteve na linha da frente e poderia perfeitamente ter sido ceifado numa operação.

Brun opta por mostrar um pouco da vida quotidiana dos seus soldados, entre a fatalidade das trincheiras e a retaguarda. Nas trincheiras, destaca uma certa normalização do medo e da violência, de um fatalismo perante a constante ameaça da morte, bem como a mais ideológica visão do dever. Fora das trincheiras, regista os pormenores da vida no CEP, as interações com os civis e soldados de outros países. Deixa uma série de apontamentos humorísticos corporativos sobre a relação com as burocracias militares, com pormenores que qualquer pessoa que trabalhe em sistemas com gestão burocrátia depressa compreende como transversais às épocas, contextos e organizações. 

Destaca-se, também, o carinho pelos seus "lãzudos", a alcunha ganha pelos soldados do CEP quando, para enfrentar o frio norte-europeu que é tão mais agreste que o português, receberam capotes de pele de carneiro que usavam com a lã virada para fora. Descreve a sua corajem e resignação, a capacidade de com pobreza de meios manterem as suas missões. La Lys é aflorada, em páginas que relatam a dureza dos combates, e o desespero de um comandante que vê os seus homens em risco. Não por acaso, o livro termina com um elogio ao 23º de Infantaria, a unidade que Brun comandou. É um texto escrito num tom panfletário e heróico, muito diferente do pendor naturalista de todo o livro.

Documento importante para conhecer a nossa história moderna, é também uma leitura acutilante, que nos leva aos campos de batalha da I guerra, com foco nos homens que por lá andaram.