sábado, 3 de maio de 2025

Da Luz Na Qual Nasceste


M.S. Rosa (2024). Da Luz Na Qual Nasceste. Edição de Autor. 

Confesso que esperava gostar menos deste livro do que gostei. Que me perdoe o Pedro Cipriano, cuja editora alimenta as minhas caçadas de leituras no fantástico português em eventos, mas este foi o único livro que trouxe do Festival Contacto. A culpa disso reside numa certa falta de tempo minha, que os caminhos da robótica andam profícuos e interessantes, e uma acumulação pouco salutar de pilhas a aguardar leitora. As viagens têm sido bastantes, e tenho o curioso condão de tropeçar sempre com alfarrabistas ou feiras do livro nas terras por onde passo. Aquando do Contacto, tremi perante a ideia de adicionar mais livros à pilha, mas lembrei-me que daqui a uns meses teremos Fórum Fantástico.

Agora, uma confissão incómoda. Foi o TikTok que me levou a pegar neste livro.  De volta e meia chega à minha linha temporal vídeos da autora, e confesso que os acho encantadores, apesar de distarem anos luz das minhas realidades e preferências. Tem um foco numa visão acolhedora da fantasia, com aquele entusiasmo e inocência da juventude (bolas, escrevo isto e dá-me uma sensação de profundo geriatrismo), a falar das suas leituras, de divindades pagãs com pendor lusitano, e do seu livro. É encantador, e encontrando-a com o seu espaço no Festival obrigou-me a trazer comigo o seu livro. Um dos aspetos que mais me interessa no fandom português é a capacidade de acolher e apoiar vozes novas, e não conheço melhor forma de o fazer do que ler os seus livros.

O livro surpreendeu-me. Em parte, era o que eu esperava - uma história que destila as influências estéticas e literárias de uma jovem autora. Colocar esta questão assim de chofre é injusta. Ao contrário de muitos outros livros desta jaez que li, se se notam as influências estéticas, este não é de todo um pastiche, ou uma elaborada fan fiction que imita iconografias, estéticas e estruturas narrativas. Senti a voz pessoal da autora a afirmar-se, a criar e elaborar o seu próprio mundo ficcional. A estética é a da fantasia, com os seus elementos generalistas, mas a criação é muito pessoal. 

A leitura transportou-me a um mundo ficcional próprio, bem elaborado e com uma sensação de expansão. Não é de todo a típica clonagem das fantasias medievalistas que costuma ser habitual nestas literaturas, por parte de criadores mais jovens (ou menos jovens, escrevo a pensar no Filipe Faria e outras vozes mais veteranas, mas confesso, estando os meus pés assentes na Ficção Científica, irei sempre olhar com viés para a fantasia).

O enredo é enganadoramente simples. É essencialmente linear, seguindo a estrutura da gesta de uma heroína que se vê apanhada por forças incompreensíveis, mergulhada em conspirações tenebrosas, e irá deparar-se com a preciosa ajuda de personagens peculiares. O livro passa-se num futuro próximo onde tecnologia e magia coexistem, pelas piores razões - um ritual que visava exterminar a humanidade e substituí-la por uma miríade de seres mágicos, denominados Fatai no corpus mítico do livro, foi apenas parcialmente bem sucedido. O mundo transformou-se, mas os traços humanos não desapareceram de todo, bem como a sua memória.

O ritual centra-se no amor, necessita da união de duas almas apaixonadas para se concretizar, e as aventuras da jovem personagem envolvem o descobrir do porquê dos seus poderes, bem como o reencontro com a rapariga amada. Uma reunião apaixonada das duas amadas irá encerrar o ritual, com resultados fatídicos para a humanidade, mas a cegueira da paixão impede a jovem cujas aventuras seguimos de compreender isso, apesar de tal se tornar patente para todos os personagens ao longo do livro. 

É aqui que este ganha uma dimensão inesperada. Sem querer fazer grandes spoilers, para não assustar aqueles que lêem livros primeiramente para saber como termina a história, digamos que a premissa de amor do ritual obriga a uma igualdade entre partes. Ao mostrar que tal não acontece, este livro sai de uma típica fantasia de rituais e aventuras e torna-se algo mais profundo, uma metáfora sobre desequilibrios amorosos, relações tóxicas, a violência emocional dos primeiros amores e a necessidade de auto-descoberta que se faz de encantos e desencantos. Esse abanão, que se torna muito claro no final do livro, não o esperava, e tornou-o uma leitura muito mais interessante pela capacidade da autora em nos dar este substrato complexo sobre o que parecia ser uma história linear.

Há uma forte componente activista na obra. As personagens são não-heteronormativas, e há um esforço consciente no uso de linguagem inclusiva. Esta, soa-me sempre deselegante e aqui não foi exceção. No primeiro ponto, dou crédito à autora por ter sido capaz de escapar ao habitual tom de preleção e sermão que torna boa parte das ficções onde as questões de sexualidade e género uma chatice de ler, demasiadas vezes mais manifesto do que literatura. Estas são um elemento essencial da história, mas o livro vive para além disso. Confesso que como membro de uma geração onde este tipo de afirmação não era muito bem vista, sorrio quando vejo a naturalidade e a vontade com que esta nova geração luta por um mundo mais aberto e compreensívo, apesar de todas as forças demasiado visíveis em contrário.  Faz todo o sentido, evoluímos com afirmação, e a construção de ficções segue naturalmente essa tendência. O que não faz sentido é o imobilismo conservador e a repetição à exaustão de estéticas que quando surgiram foram interessantes e vibrantes, mas que sem evolução de tornam bafientas.