M.S. Rosa (2024). Da Luz Na Qual Nasceste. Edição de Autor.
Confesso que esperava gostar menos deste livro do que gostei. Que me perdoe o Pedro Cipriano, cuja editora alimenta as minhas caçadas de leituras no fantástico português em eventos, mas este foi o único livro que trouxe do Festival Contacto. A culpa disso reside numa certa falta de tempo minha, que os caminhos da robótica andam profícuos e interessantes, e uma acumulação pouco salutar de pilhas a aguardar leitora. As viagens têm sido bastantes, e tenho o curioso condão de tropeçar sempre com alfarrabistas ou feiras do livro nas terras por onde passo. Aquando do Contacto, tremi perante a ideia de adicionar mais livros à pilha, mas lembrei-me que daqui a uns meses teremos Fórum Fantástico.
Agora, uma confissão incómoda. Foi o TikTok que me levou a pegar neste livro. De volta e meia chega à minha linha temporal vídeos da autora, e confesso que os acho encantadores, apesar de distarem anos luz das minhas realidades e preferências. Tem um foco numa visão acolhedora da fantasia, com aquele entusiasmo e inocência da juventude (bolas, escrevo isto e dá-me uma sensação de profundo geriatrismo), a falar das suas leituras, de divindades pagãs com pendor lusitano, e do seu livro. É encantador, e encontrando-a com o seu espaço no Festival obrigou-me a trazer comigo o seu livro. Um dos aspetos que mais me interessa no fandom português é a capacidade de acolher e apoiar vozes novas, e não conheço melhor forma de o fazer do que ler os seus livros.
O livro surpreendeu-me. Em parte, era o que eu esperava - uma história que destila as influências estéticas e literárias de uma jovem autora. Colocar esta questão assim de chofre é injusta. Ao contrário de muitos outros livros desta jaez que li, se se notam as influências estéticas, este não é de todo um pastiche, ou uma elaborada fan fiction que imita iconografias, estéticas e estruturas narrativas. Senti a voz pessoal da autora a afirmar-se, a criar e elaborar o seu próprio mundo ficcional. A estética é a da fantasia, com os seus elementos generalistas, mas a criação é muito pessoal.
A leitura transportou-me a um mundo ficcional próprio, bem elaborado e com uma sensação de expansão. Não é de todo a típica clonagem das fantasias medievalistas que costuma ser habitual nestas literaturas, por parte de criadores mais jovens (ou menos jovens, escrevo a pensar no Filipe Faria e outras vozes mais veteranas, mas confesso, estando os meus pés assentes na Ficção Científica, irei sempre olhar com viés para a fantasia).
O enredo é enganadoramente simples. É essencialmente linear, seguindo a estrutura da gesta de uma heroína que se vê apanhada por forças incompreensíveis, mergulhada em conspirações tenebrosas, e irá deparar-se com a preciosa ajuda de personagens peculiares. O livro passa-se num futuro próximo onde tecnologia e magia coexistem, pelas piores razões - um ritual que visava exterminar a humanidade e substituí-la por uma miríade de seres mágicos, denominados Fatai no corpus mítico do livro, foi apenas parcialmente bem sucedido. O mundo transformou-se, mas os traços humanos não desapareceram de todo, bem como a sua memória.
O ritual centra-se no amor, necessita da união de duas almas apaixonadas para se concretizar, e as aventuras da jovem personagem envolvem o descobrir do porquê dos seus poderes, bem como o reencontro com a rapariga amada. Uma reunião apaixonada das duas amadas irá encerrar o ritual, com resultados fatídicos para a humanidade, mas a cegueira da paixão impede a jovem cujas aventuras seguimos de compreender isso, apesar de tal se tornar patente para todos os personagens ao longo do livro.
É aqui que este ganha uma dimensão inesperada. Sem querer fazer grandes spoilers, para não assustar aqueles que lêem livros primeiramente para saber como termina a história, digamos que a premissa de amor do ritual obriga a uma igualdade entre partes. Ao mostrar que tal não acontece, este livro sai de uma típica fantasia de rituais e aventuras e torna-se algo mais profundo, uma metáfora sobre desequilibrios amorosos, relações tóxicas, a violência emocional dos primeiros amores e a necessidade de auto-descoberta que se faz de encantos e desencantos. Esse abanão, que se torna muito claro no final do livro, não o esperava, e tornou-o uma leitura muito mais interessante pela capacidade da autora em nos dar este substrato complexo sobre o que parecia ser uma história linear.
Há uma forte componente activista na obra. As personagens são não-heteronormativas, e há um esforço consciente no uso de linguagem inclusiva. Esta, soa-me sempre deselegante e aqui não foi exceção. No primeiro ponto, dou crédito à autora por ter sido capaz de escapar ao habitual tom de preleção e sermão que torna boa parte das ficções onde as questões de sexualidade e género uma chatice de ler, demasiadas vezes mais manifesto do que literatura. Estas são um elemento essencial da história, mas o livro vive para além disso. Confesso que como membro de uma geração onde este tipo de afirmação não era muito bem vista, sorrio quando vejo a naturalidade e a vontade com que esta nova geração luta por um mundo mais aberto e compreensívo, apesar de todas as forças demasiado visíveis em contrário. Faz todo o sentido, evoluímos com afirmação, e a construção de ficções segue naturalmente essa tendência. O que não faz sentido é o imobilismo conservador e a repetição à exaustão de estéticas que quando surgiram foram interessantes e vibrantes, mas que sem evolução de tornam bafientas.