quinta-feira, 21 de março de 2024

O Vermelho e as Sombras


Vasco Graça Moura (2008). O pequeno-almoço do Sargento Beauchamp. Lisboa: Alêtheia.

Na Lisboa ocupada pelas tropas de Junot, vive-se um ambiente de intrigas e procura da sombra do poder. Com a coroa exilada, muita da aristocracia que se ficou tenta aliar-se aos ocupantes franceses, procurando com isso manter prebendas e ganhar favores. O espectro do ataque inglês paira no ar, e no resto do território grassa a revolta contra os ocupantes. Jacinto, um jovem aristocrata, vive um pouco alheado disso, apesar de ter de viver nesses meios. Frequentador dos salóes galantes, vai-se envolvendo com algumas mulheres, mas apercebe-se que despertou o interesse de uma filha de família de alta fidalguia. Antevendo aí um rumo para a sua vida, com a probabilidade de um casamento vantajoso que lhe traga elevação social, Jacinto decide reorientar a sua vida nesse sentido. Mas depara-se com um problema: a sua ligação à mulher de um oficial português exilado no Brasil traduz-se numa gravidez indesejada. Tentanto resolver a situação envitando um escândalo que lhe arrinuará o futuro, Jacinto retira-se com a amante grávida para a casa familiar desta, no Alentejo. Na noite em que o parto se está a consumar, parte em busca de uma mulher de aldeia capaz de resolver o problema. Ao regressar, depara-se com uma patrulha francesa, que o confunde com um desertor e o fuzila ali mesmo.

Primeira de três curtas novelas, esta história leva-nos aos tempos conturbados da guerra peninsular. Não sendo o foco da narrativa, que se centra nas intrigas e nas futilidades da vida em sociedade, é o elemento sempre presente e que domina todas as ações. O retrato da nobreza portuguesa é implacável, como intriguista, capaz de vender o patriotismo pelos favores dos invasores, e essencialmente empenhada em preservar o seu modo de vida, como pouco interesse dado ao país.


Vasco Graça Moura (2010). O Mestre de Música. Lisboa: Alêtheia.

Continuando a trilogia iniciada com o Pequeno Almoço do Sargento Beauchamp, é hora de olhar para os destinos do menino enjeitado, filho da relação escandalosa do fuzilado Jacinto com a mulher de um tenente da marinha. O abandono do filho não tem significado para a mãe, que vive consumida num certo ódio. Sabe que Jacinto se preparava para a abandonar para cortejar a filha dos condes de Sardoal, e mesmo como o amante morto, procura vingar-se da jovem que o encantou. Faz-lhe saber da morte do seu enamorado, e no desenrolar da história, a filha dos condes fica obcecada com o encontrar o filho de Jacinto, que decide adoptar como seu. Algo que se torna ainda mais intorelável para a mãe biológica da criança, que mete em andamento um ambicioso plano para raptar a criança. Para o conseguir, convence um antigo amante agora regressado a Lisboa, depois de um périplo europeu e americano por mesas de jogo, de que o filho afinal era dele (e, dada a vida algo licensiosa que esta mulher levava, até poderia mesmo ser isso). Este alia-se a um oficial inglês que, obecado por uma bela víúva que habita com os condes de Sardoal, também alinha num duplo rapto, o da criança enjeitada e o da viúva. Apesar da assistência de uma jovem criadita que os conspiradores conseguem infiltrar na família aristocrática, tudo correrá pelo pior. O rapto náo se consuma, e o suposto pai acaba morto por uma bala disparada de uma arma carregada pelo próprio suposto filho. Resta aos conspiradores ocultar-se, desviando atenções para que a verdade não seja descoberta.

Neste romance, sempre com as guerras peninsulares como pano de fundo, a ação torna-se mais rocambolesca e moralista. Há uma oposição entre a jovem que ama o falecido Jacinto ao ponto de exigir apadrinhar uma criança ilegítima, e a mãe desta, que quer apenas ferir e destruir a jovem. Pelo meio, temos um verdadeiro cortejo dos vícios sociais, com jogadores inveterados e mestres de música mais exímios em seduzir as jovens alunas, oficiais britânicos corruptos, e um verdadeiro bas-fond de mulheres que tudo fazem para manter as aparências e estatuto social.


Vasco Graça Moura (2011). Os Desmandos de Violante. Lisboa: Alêtheia.

Encerrando esta trilogia assumidamente amoral passada nos tempos conturbados das invasões francesas, a narrativa centra-se agora nas aventuras de Violante. Esta personagem surge no romance anterior como a criadita que é infiltrada na casa dos condes de Sardoal para propiciar o rapto falhado. Junto com a mãe do menino enjeitado, é a única que sabe de toda a verdade sobre o crime, mas consegue desviar as atenções da família e da polícia. Consegue uma nova vida como criada de confiança dos condes, mas almeja mais para si própria, conseguindo-se insinuar junto da jovem viúva que vive com os condes de Sardoal. Esta prepara um regresso a Inglaterra para tratar de negócios e leva consigo a jovem criada, que descobre um novo mundo de prazeres, e começa a sair da sua condição servil. Mas, antes da partida, terá ainda de fazer um favor à mãe do rapaz enjeitado, que não desistiu da ideia do rapto. Não está interessada no filho, mas sim em magoar profundamente a mulher que robou o coração do seu amante. Desta vez, o rapto será bem sucedido, o que levará a jovem filha dos condes à loucura. Regressada de Inglaterra, a criada Violante mostra-se ser a única capaz de sossegar os ânimos enlouquecidos da jovem. Mas não se resigna à sua condição de criada, e ameaça largar a jovem. O velho conde, recém-viúvo, resolve o problema casando-se com a criada, tornando-a condessa do Sardoal. A história encerra com uma tentativa de devolver o menino raptado à casa do Sardoal, que a nova condessa rejeita.

Termina assim a trilogia O Vermelho e as Sombras, onde VGM olha para a história das invasões francesas. Dado o tipo de narração, leve e cheia de peripécias, e a sucessão de desmandos morais das personagens, sente-se nestas três novelas uma homenagem ao folhetim, o género literário que se comprazia nos vícios humanos e nas intricadas intrigas de moralismo binário que faziam o gosto dos leitores do século XIX (e que hoje sobrevive nas telenovelas televisivas). A sequência destes três romances quebra a imagem de VGM como um escritor sério, dada a sua propensão para o picaresco, escabroso e licensioso. A história é amoral, e termina sempre com a vitória amarga dos piores personagens, enquanto os virtuosos saem sempre prejudicados. No seu conjunto, forma um intrigante romance de época que evoca a sociedade portuguesa nos tempos conturbados das guerras peninsulares, tempos sempre propícios a aventureiros e intriguistas.