quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Estalinegrado: até ao último Cartucho


Heinz Schröter (1968). Estalinegrado: até ao último Cartucho. Lisboa: Estúdios Cor.

Rumamos aos terríveis momentos da batalha de Estalinegrado, onde um exército alemão foi dizimado pelas forças russas. Uma das piores batalhas da II Guerra, que foi pródiga em horrores, e, também, um dos pontos de inflexão que mostrou a travagem da ofensiva alemã e marcou o início do longo caminho para a sua derrota. 

A batalha é aqui contada sob a perspetiva alemã, escrita por um correspondente de guerra do exército ao qual foi dada a tarefa institucional de contar a história desta tremenda carnificina. A encomenda saiu diretamente das ordens de nada menos do que Goebbels e Hitler, mas este livro dificilmente pode ser considerado propagandístico. Com acesso a atas de reuniões dos altos comandos, relatórios de campo, correspondência de soldados, registos de comunicações e relatos de sobreviventes, Schröter constroi um relato episódico que nos dá o panorama da batalha, e dos momentos antecedentes. O livro não segue uma ordem cronológica rigorosa, alterna entre o relato historiográfico de decisões e movimentos militares e o relato das vivências na cidade cercada. Nesta vertente, é uma leitura arrepiante. 

É provável que este livro tenha sido reescrito ou revisto no final da guerra, porque o quadro que pinta não é nada lisonjeiro para quem o encomendou. O autor dificilmente escaparia a um campo de concentração, ou pior, com o que conta neste livro. Se o objetivo talvez fosse o de imortalizar um glorioso sacrifício alemão para assegurar o futuro do Reich, a realidade descrita depressa desengana. Ao mapear acontecimentos, o autor traça um roteiro de más decisões, incompetência dos altos comandos, cegueira ideológica e teimosia que condenou milhares de soldados a uma morte inútil. Aponta claramente o dedo a Hitler, e aos generais do alto comando alemão, demonstrando que lhes coube a responsabilidade sobre tanto sangue derramado.

O relato das vivências é aterrador, crónica amarga dos últimos dias de soldados encurralados, a quem a rendição era proibida. Alguns escaparam-se, outros sacrificaram-se lutando para lá das margens do impossível, a maioria foi levada pela avalanche soviética, o gelo do inverno e as privações do cerco. Conhecedores da história, sabemos de antemão que aqueles homens estavam condenados, mas isso não torna menos palpável o horror do seu fim.

Claro, coloquemos a questão no seu contexto: a II Guerra foi plena de atrocidades, e a frente leste ficou para a história pela sua singular selvajaria. O nazismo via o leste europeu como terra de sub-humanos, que teriam de ser exterminados para dar origem ao futuro risonho de novas colónias alemãs, e agiu em conformidade. Alie-se a isso a implacabilidade soviética, com a clássica estratégia de carne para canhão (parece haver sempre mais russos do que balas, na história da guerra), e a dureza do inverno russo. O lado mais cavalheiresco da guerra ficou no ocidente, a oriente, ferro, fogo, e a perda total de inocência civilizacional.