M.R. Carey (2023). Infinity Gate. Londres: Orbit.
Uma das razões pelas quais detesto trilogias é que se o primeiro livro é bom, teremos de aguardar bastante tempo para ficar a conhecer a continuação da história. E este, parece-me ser um desses casos. Infinity Gate é uma daquelas leituras que nos agarra, damos por nós a passar a página de forma compulsiva, mesmo que estejamos numa fase menos interessante da narrativa.
A história inicia-se num mundo em colapso ambiental, onde todos os limites foram ultrapassados e se sucedem os colapsos políticos, económicos e sociais. Num instituto de pesquisa em Lagos (Nigéria, não Algarve, desculpem, não resisti à piada), que tem o condão de ter sido bem financiado e por isso está bem provido, resiste uma cientista, isolada face à cidade em colapso e ao abandono dos colegas. Sabe que está no limiar de uma descoberta, potencialmente relacionada com energia limpa. E consegue ser bem sucedida, se bem que os resultados são anómalos. Recruta a única ajuda que lhe é possível num centro abandonado, uma inteligência artificial quase consciente, para perceber a amplitude da sua descoberta: não energia limpa e abundante, mas um meio de viajar entre universos paralelos. Enquanto a Terra onde a cientista vive está em colapso irremediável, abrem-se as portas de outras Terras, de uma infinitude de universos paralelos.
A descoberta desta possibilidade não passa despercebida. Não na Terra condenada, mas noutras Terras, parte das infinitas permutações, integradas numa entidade política que se intitula Pandomínio (anda perto de pandemónio, e a sua decadência nisso é parte da história). Uma espécie de organização burocrática multiversal, que controla os acessos entre planetas paralelos, para garantir um tráfego contínuo e sem sobressaltos. Uma organização assente numa quase-IA que gere o sistema, e contando com um poderoso braço armado para se defender de quaiser intromissões.
Os universos do Pandomínio não são benévelos. A sua prosperidade baseia-se na extração de recursos das Terras paralelas. Afinal, para quê preocuparmo-nos com sustentabilidade se no universo ao lado há uma cópia de todos os recursos terrestres, e na maioria dos casos em Terras paralelas inabitadas? A lógica demente das economias de extração, de esgotamento de recursos, é algo pervasivo neste romance, ao nível macro e micro. Todo o panorama geral parte dessa ideia (que é, também, a ironia da cientista, ao perceber que o acesso a novos recursos chegou tardiamente para salvar a sua Terra). O início do romance parece levar-nos pelos caminhos do Cli-Fi, antes de avançar pelos universos paralelos. Nas histórias individuais dos diferentes personagens, também assistimos à implacabilidade da exploração, de quasi-escravaturas, de regimes que tratam os indivíduos como elementos descartáveis.
Enquanto a cientista terrestre começa a explorar os mundos paralelos, escolhendo como base uma Terra muito similar à sua de origem, o Pandomínio enfrenta a sua maior ameaça - o choque frontal com uma inteligência de máquinas, que coloninzou outros universos paralelos. A aniquilação mútua é inevitável. Duas hegemonias que prosperam extraindo recursos chocam, mesmo num panorama em que as alternativas são infinitas. Duas civilizações incapazes de dialogar, as máquinas inteligentes não conseguem conceber o conceito de vida biológica inteligente, e os burocratas do pandomínio apenas sabem reagir ao desconhecido com aplicação de força militar. Estes universos estão em risco, ambos os lados estão a desenvolver armas capazes de levar o outro lado à extinção. Claro, extinção num cenário de infinitas Terras alternativas parece pouco mais do que um grão num imenso areal, mas para quem vive nos mundos sob ameaça, essa perspetiva não anima. Se nós estamos sob uma espada de dâmocles, não é consolador saber que no universo ao lado essa espada não pende.
A chave para a resolução de todos os conflitos é-nos logo apresentada nas primeiras páginas do romance. Há um narrador omnisciente que nos recorda que os eventos da narrativa estão no seu passado, que ele é a solução que permitiu um futuro de coexistência e não aniquilação. Intuímos que envolve Inteligência Artificial, mas os detalhes disso ficarão para outro livro.
As pedras na imensa engrenagem multiversal iniciam-se com a cientista de uma Terra isolada que descobre o meio de viajar entre Terras paralelas, e a sua companheira artificial, que se mantém na Terra de origem, mas livre de constrangimentos ao seu desenvolvimento. Irão envolver o amante da cientista, um jovem de uma outra terra paralela, cuja infância foi passada às mãos de esclavagistas, e que se tornará um soldado ao serviço das forças militares do Pandomínio. Isto por causa dos descuidos de um burocrata que até faz bem o seu trabalho, mas caiu na mira de um superior vingativo devido a um descuido. Encarregue de monitorizar e eliminar a anomalia que representa o surgir de passagens entre universos não reguladas pelo sistema central, pega num comando de dois soldados que, de gatilho leve, provocam a morte física à cientista, mas não rastreiam o seu ponto de origem. A soldado mais experiente desse comando decide não assassinar o jovem que se encontrava com a cientista, alistando-o como soldado. Já a cientisa morre, mas consegue, moribunda, regressar ao seu laboratório e fazer uma cópia digital da sua consciência. Em dois universos paralelos, a cópia digital da cientista e a inteligência artificial irão unir esforços para compreender as forças que modelam o multiverso, e tentar travar o aparente destino funesto. E, para isso, contam com duas criaturas muito improváveis. Uma adolescente de uma Terra onde os lagomorfos se tornaram a vida inteligente (pensem coelhos humanóides), sobrevivente de um atentado, que incorpora dentro de si tecnologias que a tornam proscrita no seu mundo de origem, tomado por um fervor anti-máquinas após a guerra entre as duas hegemonias. Ao seu lado, o resultado de uma experiência da mega-inteligência mecanicista que está a enfrentar o Pandomínio - um simulacro de vida inteligente, criada para se infiltrar nos mundos habitados e recolher dados incorporando múltiplas extensões da inteligência das máquinas, mas este simulacro desevolve algo de radicalmente novo, um sentido de individualidade.
Infinity Gate é um livro pensado para apelar a dois tipos de fãs de ficção científica. Os que gostam de ficção de ideias deleitam-se com a lógica das Terras paralelas, as suas diferentes variantes, a mecânica das principais hegemonias, as possibilidades dos vários tipos de inteligência artificial, as metáforas pouco veladas sobre o colapso ambiental trazido pelas alterações climáticas e os efeitos de economias de extração. Os que preferem histórias de aventura e ação não saem defraudados, boa parte do livro (por vezes demais, penso eu que prefiro as ideias) é ação pura, por vezes empolgante, por vezes amarga. O livro pega no tipo de estrutura narrativa que geralmente associamos à Space Opera, as vastas paisagens, os conflitos entre blocos gargantuescos, as desventuras de personagens que apesar de serem o foco da história, são minúsculas face ao vasto panorama, e aplica-o ao conceito de universos paralelos. O resultado é interessante, e resta esperar pelos próximos livros para ver que caminhos irá percorrer.