António Silva Gaio (1974). Mário: Episódios das Lutas Civis Portuguesas. Lisboa: Arcádia.
Ah, as delícias dos achados do acaso em alfarrabistas. Atraiu-me o subtítulo do livro, que apontava para ser um romance passado nos tempos da guerra civil portuguesa entre liberais e absolutistas, na muito conturbada primeira metade do século XIX. O romance, originalmente publicado em 1868, é obra orfã, o seu autor faleceu relativamente novo, sem nos legar mais do que este livro e umas peças de teatro.
O que podemos esperar deste livro? Bem, o típico dramalhão da época romântica, com uma prosa carregada de sentimentos exacerbados. O tom é sempre alto, o livro joga-se em extremos absolutos, é tudo ou muito feliz, ou muito trágico. A ação passa-se num Portugal oprimido pelo regime miguelista, reprimido por leis e poderosos injustos, enquanto a revolta liberal vai crescendo apesar de todas as dificuldades. Este é o cenário, mas não o cerne da história. Mário parte do nome de um dos principais personagens (curiosamente, não é o que mais aparece, apesar de ser central na narrtiva: o jovem filho de liberais, que na fuga aos absolutistas se vê apanhado, degredado para África, fugido para o Brasil e regressado como soldado alistado nos defensores da carta constitucional que, a partir do Porto, acabará por derrotar as forças opressoras.
A história de Mário é, na verdade, uma consequência. Dos tempos que se vivem, claro, mas também dos desmandos de um grande senhor local. A parte mais tocante da história passa-se nas faldas da Serra da Estrela, num presbitério habitado por um padre bom, amante da liberdade e que não tolera os desmandos dos poderosos. Mas, isolado e perante a força dos tiranos, não consegue fazer muito. Só não é preso, como mais uma vitima de desmandos, porque o profundo respeito que o povo lhe vota trava os poderosos. Se bem que estes têm outras formas de cercear as liberdades.
Há uma longa história, de rivalidades entre a família do bom pároco e outra família terratenente local. Família essa que é liderada por um cacique absolutista, que usa e abusa do seu poder para oprimir aqueles que mostrem o mais leve laivo de liberalismo, e com isso enriquecer ainda mais. As purificações políticas são sempre um bom caminho para as riquezas. Este homem, a cuja vontade ninguém resiste, encontra um obstáculo na virginal sobrinha do pároco, que desperta os seus instintos lúbricos.
O homem tudo fará para conquistar a rapariga, sendo sempre rejeitado. Esta está apaixonada pelo rapaz liberal, e isso será a causa dos sofrimentos deste. Quando um cacique local todo-poderoso mete os olhos numa rapariga e descobre que o amado dela pertence ao lado oposto da barricada, todas as injustiças e desmandos serão cometidos. O viláo encarna os piores vícios, o abuso de poder, lubricidade, impidedade, supressão de liberdades, opresser dos mais fracos. E que figura mais fraca poderá existir do que uma jovem orfã, apaixonada por um degredado, vivendo em honrada pobreza com o seu tio pároco?
Este romance é uma sucessão de sevícias morais, onde o vilão tenta tudo para oprimir a família rival e apoderar-se da rapariga. Quase o consegue, várias vezes, mas sempre travado pela coragem de terceiros. Grande parte das páginas detalham esta história, e quase se sente que o romance foge ao contexto das guerras civis. A três quartos, isso muda, e a história foca-se nos combates, na defesa do Porto e a progressiva derrota dos absolutistas. A derrota que aniquilará o cacique local, reunirá o amantes (depois de alguns mal-ententidos tão ao gosto da sensibilidade romântica), e trará a paz à região, e a liberdade ao país.
Apesar da prosa tipicamente exacerbada da época, e de um foco muito elevado no melodrama clássico, dei por mim atraído pelo livro. A prosa agarra-nos, e a curiosidade mantém-se ao longo das peripécias. É uma boa leitura, que nos fala de um momento na história portuguesa ainda fresco na memória dos contemporâneos do autor, mas também nos entretém como um bom romance de aventuras. Foi, deveras, um belo achado de alfarrabista.