Paulo Mendes (2022). Elviro. Escorpião Azul.
Depois do início auspicioso para os leitores que foi o brilhante O Penteador, a fasquia estava alta para este autor. Não tenho problemas em classificar o seu primeiro livro editado como um dos melhores livros de sempre da BD portuguesa, entre a qualidade gráfica e narrativa, e o puro divertimento de uma das histórias mais bem humoradas que já li. Quando soube da edição desta segunda obra, temi o efeito negativo do livro seguinte, depois de um início fulgurante há sempre o risco do livro seguinte do autor nos desiludir, porque as expetativas ficaram demasiado elevadas.
Diga-se que este Elviro já não tem o impacto que teve O Penteador. Isso é natural, já conhecemos o autor e o seu estilo. Já sabemos o que esperar dele. Mas não quero com isto dizer que o livro desiluda. Bem pelo contrário, mostra a continuidade de um trabalho brilhante aos níveis gráfico e narrativo, cruzando um bom humor caricatural e surreal com um toque de crítica política, social e de costumes. Algo que, diga-se, é apanágio dos melhores satiristas desde a antiguidade clássica.
Já se percebeu que Paulo Mendes é um entusiasta das geografias imaginárias, efabulações sincréticas que reúnem variegados elementos estéticos do real, com um forte toque de nostalgia e o visual do tradicional português. As Nalgas do Mar que acolhem as desventuras deste afortunado Elviro são uma colisão agradável da arquitetura de todas as vilas balneares portuguesas à beira-mar, com a memória do que foram num passado recente, no dealbar do turismo de massas. Eu vejo nela um pouco de Ericeira, mas sou suspeito, por conhecer esta vila ainda piscatória dos tempos dos verões dourados da infância, de subúrbio nos anos em que lá vivi (mas aqueles por-do-sol da janela do apartamento foram algo que nunca me fartei), ou do porto de abrigo para nómadas digitais em que se tornou nos dias de hoje. Outros leitores certamente reverão nas ruas de Nalgas do Mar as suas memórias nostálgicas de vilas pitorescas, entre praias e ruas cheias de lojas estivais.
A história é aquilo que também já sabemos esperar deste autor, um voo de fantasia em tom leve e divertido, que mais do que a história que nos conta, nos mergulha numa certa nostalgia do passado. Desta vez, as peripécias passam-se nas férias de um homem apaixonado por elétricos, que quer visitar uma terra onde estes estão prestes a ser substituídos por outros meios de transporte. Tudo irá correr mal a este pobre homem até terminar bem, entre desavenças com a mulher de quem se afasta, deslumbres amorosos de verão com jovens da terra, e um falhanço total nas suas tentativas de salvar a presença dos elétricos. O resto, têm mesmo que ler, é um admirável desfile de personagens simpáticas e antipáticas, entre o padre apaixonado por música eletrónica, a imigrante russa que conduz trolleis, os afáveis mecânicos e condutores dos velhos elétricos, o polícia apaixonado da terra, os fãs de elétricos que se congregam neste final de vida de um serviço. Nãpo podiam faltar o político insensível e corrupto, o comerciante medíocre que se acha o melhor do mundo, e até o galifão de praia que durante o verão seduz as turistas de meia idade. Nada escapa ao traço satirizante de Paulo Mendes.
As tropelias em que mete o seu Elviro são dignas de Job, mas como é de esperar, tudo termina bem. Apesar do final da história não ser o final do livro, as últimas pranchas são uma amarga caricatura da descaracterização das vilas marítimas portuguesas perante a pressão do turismo e suburbanização. Brilhantemente ilustrado e muito divertido, Elviro mostra a grande capacidade deste criador em trazer-nos excelentes leituras. Aguardemos o próximo, e enquanto esperamos, podemos sempre ir comer um belo arroz de petichus.
O quê, não sabem o que são petichus?