domingo, 13 de outubro de 2019

Escolhas do Ano


É aquela boa tradição anual, as escolhas literárias do ano no Fórum Fantástico, que ficam feitas mesmo que falte ao evento (não foi o caso este ano). É sempre divertido partilhar leituras com a Cristina Alves e o grande, gigante Barreiros, e este ano também com o kingpin Rogério Ribeiro.

As melhores leituras:

Ficção Científica:

Menace of the Machine, Mike Ashley: O que é que poderemos aprender sobre os dilemas contemporâneos trazidos pela evolução rápida das tecnologias de robótica e inteligência artificial, lendo histórias de imaginação e antecipação com mais de um século? Surpreendentemente, mais do que se esperaria, dirão leigos nos domínios da Ficção Científica. Para quem conhece o género, esta presciência não é surpreendente. Não tem a ver com algum carácter oracular da FC (que nunca pretendeu ter), mas na capacidade dos autores em observar tendências contemporâneas e extrapolar a sua evolução. Esquecemos que as questões que agora levantamos já o foram, anteriormente. No dealbar da revolução industrial, nos tempos da mecanização do mundo, mas também em tempos anteriores à revolução industrial.. O interesse milenar nos autómatos despertou discussões sobre vida artificial, e mesmo a mitologia legou-nos histórias milenares que mostram uma preocupação enraizada com estas questões.Lendo estas histórias, há padrões que se manifestam. A ideia da máquina inteligente, cujas capacidades suplantam as humanas, e o papel que assume: pastor benevolente, manipulador de destinos em direção à sua visão utópica optimizada , ou exterminador de uma humanidade obsoleta. O perigo da mecanização para os empregos, o suplantar da força de trabalho humana por mecanismos eficientes e incansáveis. A decadência do espírito humano em ambientes onde as máquinas respondem a todas as necessidades, perdendo-se o ímpeto, impulso do esforço motivado pela carência. São questões que hoje se discutem ao falar do impacto da robótica e inteligência artificial, mas como mostram estes contos, não são questões de hoje.

Gnomon, Nick Harkaway: Este é um livro que demora tempo a revelar-se. Cheio de histórias dentro de histórias, desafia-nos num longo e contínuo puzzle de realidades que se intersectam e influenciam. Desde o início, somos levados a assumir que existe apenas uma que é a real, a base conceptual do livro, mas a constante colisão dos restantes fios narrativos coloca sempre essa visão em questão. Uma constante sensação de fluidez do irreal, que culminará na percepção que a mais sólida e tangível das personagens não é, ela própria, real. Despojado das suas camadas de ofuscação narrativa, Gnomon é uma profunda meditação sobre os perigos de uma sociedade mediada por informação electrónica. Sem a experiência tangível dos factos, resta-nos confiar na fiabilidade da informação que nos é dada pelos media. Por caminhos muito ínvios, perpendiculares à nossa experiência, Gnomon é uma meditação sobre a nossa contemporaneidade mediada pelos media digitais, um aviso sobre a confiança que depositamos nos ambientes que formam a nossa percepção do mundo que nos rodeia.


Batalha da Escuridão, Bruno Soares: É de sublinhar que Bruno Soares é um escritor com lata. No exíguo meio literário do fantástico português, privilegia-se uma certa erudição, atenção ao lado literário da ficção científica e rigor na criação do mundo ficcional. E, claro, uma boa história, que é condição essencial para uma boa leitura, os recursos estilísticos não são o cerne do prazer de ler. Nesta série coligida em edição única da Divergência, Bruno Soares segue um outro caminho, e oferece-nos uma história de pura aventura clássica. Provavelmente, atrairá a ira crítica de leitores e escritores. Confesso que foi essa a minha tentação, mas diverti-me demasiado com esta leitura para ter ânimo para a desancar. As influências são bem visíveis, a narrativa é rápida e descomplexada, todo o propósito do livro é entreter, divertir o leitor com uma boa história. As peripécias sucedem-se, sempre a um ritmo imparável. Creio que podemos perdoar a intencional falta de erudição deste livro. Recorda-nos algo que tem sido essencial no gosto pela Ficção Científica. Por vezes, precisamos de histórias simples e divertidas que regressem ao elementar neste género literário. A Batalha da Escuridão é uma dessas histórias.

Comics/BD

Flex Mentallo, Grant Morrison e Frank Quitely: Sempre achei deprimente que "Hero of the Beach" nunca se tenha tornado o meme que deveria.  Entre as personagens estranhas que criou em Doom Patrol, Flex Mentallo destaca-se por ter sido aproveitado numa série individual. É uma série metaficcional, que revelou o fascínio que Morrison tem pelos comics enquanto mitologia pop, um tema que viria a aprofundar em Supergods. Mentallo é a conduta ao longo da qual flui uma narrativa aparentemente não linear, que converge para uma colisão de meta-ficções. Talvez a realidade seja o mundo cinzento deste herói atípico, com o seu ar de Morrissey culturista, corpo hercúleo e mente inocente, a remeter para os anúncios a métodos de fortalecer o corpo das revistas de banda desenhada antigas. E a eterna tanga tigrada, talvez o pormenor mais LOL do personagem. Ou talvez a realidade seja o delírio de um escritor a sofrer uma péssima trip de medicamentos misturado com ácido lisérgico. Eventualmente, a realidade talvez seja o mundo de possibilidades infinitas, vibrante nas suas cores primárias, dos personagens bidimensionais dos comics.  O que é, em suma, Flex Mentallo? História de aventuras grimdark a homenagear o simplismo ingénuo dos comics clássicos, reflexão meta-textual e referencial sobre o género, delírio induzido por psicotrópicos, elogio pessoal ao fascínio pelos comics. Há um pouco disto tudo nesta aventura do inesperado hero of the beach.

A Viagem da Virgem, Pepedelrey, Rui Gamito, Jorge Coelho e Rui Lacas: Este livro foge claramente aos estereótipos da Ficção Científica, embora faça um uso liberal deles. É o tipo de história que se espera de quem a criou, uma meditação livre e libertina, de estética independente. Apesar de ser a quatro mãos, espelha o sentido estético do seu criador, que, como já conhecemos, não é complacente com caminhos já trilhados, nem faz banda desenhada que serve para entreter. Não esperemos uma história dentro dos limites clássicos da Ficção Científica. Claro, há andróides, aliens e naves espaciais, cidades futuristas e cibernética dura, mas não se esperaria de Pepedelrey um baralhar e tornar a dar destas iconografias. A narrativa que constrói segue caminhos catárticos, de sexualização assumida. Poderia ser igual a tantas outras histórias que se lêem na banda desenhada independente, mas mexe com FC e não com as mais habituais sensações e impressões autobiográficas dos autores.

Dylan Dog: O Velho que Lê, Fabio Celoni: Fabio Celoni é outro dos que compreende bem o real significado de Dylan Dog. Algo que está patente neste fantástico O Velho Que Lê. Nesta aventura do Old Boy, este mergulha nas memórias do imaginário de um homem idoso. Anónimo, passa despercebido na cidade. Ler é a sua paixão, e no interior das suas memórias o passado real mescla-se com fragmentos literários. Este é o ponto de partida para uma história erudita, surreal e tocante, onde o sobrenatural se cruza com reflexos das grandes histórias da literatura. Não é uma história de Sclavi, mas podia ser. Celoni também assina a ilustração, num traço expressivo e detalhado que sublinha o realismo mágico da narrativa.

Mar de Aral, José Carlos Fernandes, Roberto Gomes: Já há demasiado tempo que não tínhamos o privilégio de ler trabalhos inéditos de José Carlos Fernandes. Mar de Aral marca o inesperado regresso deste autor, que considero como um dos grandes nomes da BD portuguesa contemporânea. Um regresso feito apenas como argumentista, deixado a cargo de outros a ilustração das suas histórias. Esta combinação funciona bem. O desenhador Roberto Gomes consegue um equilíbrio estilístico entre o seu traço pessoal e uma iconografia reminiscente do trabalho gráfico de José Carlos Fernandes. Algo que é especialmente notório na paleta de cores, a privilegiar os suaves ocres amarelados que são características. Mas também no traço, em muitos momentos bastante similar ao de JCF. No entanto, não assumam que o cunho pessoal do ilustrador se dissolve na influência estética do agora argumentista. Pelo contrário, complementam-se muito bem.
Está de volta o seu suave onirismo, o fascínio retro com geografias distantes cujos nomes evocam exotismo. Este é um livro para ler bem devagar, saciando a sede causada pelo longo hiato de trabalhos deste autor.

Paranoia Star, Suehiro Maruo: Num trabalho marcadamente pessoal, Maruo lida em histórias curtas com obsessões advindas da colisão entre ideologias e tecnologia. Algumas remetem directamente para a obra de P.K. Dick, com andróides a descobrir a sua condição não-humana ou seres humanos a quererem transcender os limites do corpo através de interfaces sangrentos com a máquina. Outra poderosa ideia nesta colecção prende-se com os perigos do militarismo e da crença cega em ideologias fanaticistas. O autor mostra um certo fascínio com o lado horripilante da submissão cega ao nazismo ou ao militarismo nipónico. Maruo assusta, repele e faz pensar com o seu traço peculiar, misto de estética manga e tradição europeia e o seu fascínio peculiar com as mutações impossíveis do corpo.

Literatura Fantástica:

The Grand Dark, Richard Kadrey: Suponho que este seja um rito de passagem para escritores do fantástico. Nalgum momento da sua carreira literária, têm de escrever o livro onde o urbanismo fantasista seja o foco.  Kadrey, depois de uns anos a explorar o divertido filão das aventuras sobrenaturais de Sadman Slim, muda de registo com a sua intrigante Lower Proszawa. Como a descrever? Tem a decadência jazz age de Berlim durante a República de Weimar, talvez a sua grande fonte de inspiração (toda a sucessão de nomes germânicos ajuda a criar esta impressão). Não escapa a um certo ar pós-apocalíptico, com luxo e ruínas num pós-guerra periclitante. Socorre-se de um estilo entre o steam e o dieselpunk, robots mecânicos dotados de inteligência artificial dividem a cidade com criaturas híbridas produzidas por engenharia genética, sobreviventes mutilados da guerra que ocultam as feridas debaixo de máscaras de ferro, e os habitantes díspares entre a pobreza e o luxo. O ambiente é libertino e opressivo, numa cidade dominada por um governo imperialista, vigiada por uma implacável polícia secreta combatida por diversos grupos rebeldes.  Quando a história ganha energia, revela-se um tour de force em ritmo imparável.

Lisboa Oculta: Devo dizer que me diverte a ideia de turistas incautos, calcorreando as ruas de Lisboa de telemóvel em punho, prontos a registar os fenómenos descritos neste livro. A ideia clássica do sacarino guia turístico é aqui subvertida com a intrusão do fantástico, através de contos curtos. O livro sabe a pouco, mas é esse o objetivo, mais o de estimular o imaginário urbano que o explorar exaustivamente.

Não Ficção:

The Silk Roads, Peter Frankopan:  A história global, analisada de um ponto de vista diferente do habitual. Normalmente, lemos a história focada na Europa como o centro a partir do qual giram os acontecimentos. Frankopan desloca o eixo da história global para o médio oriente, mostrando-nos como esta região tem sido o palco central. Essencialmente por ser uma zona de transição, o espaço entre a europa e a ásia, por onde passam as rotas comerciais milenares que unem os continentes. Frankopan defende este ponto de vista com argumentos poderosos: a expansão de Alexandre para a Ásia; se, como europeus, reclamamos a herança do império romano, na verdade o seu principal foco estava também na ásia; a época das descobertas, essencialmente motivada pela busca por rotas marítimas de comércio com a ásia que ultrapassassem os domínios árabes e venezianos, que controlavam as rotas marítimas e terrestres herdeiras da clássica rota da seda. Um peso histórico que hoje se sente, pela preponderância do petróleo e jogos geopolíticos pelo seu domínio, mas também pelo ressuscitar dos antigos caminhos como via alternativa de comércio e troca de bens entre a China e a Europa.

Gods and Robots, Adrienne Mayor: Os mitos gregos também nos trazem uma enorme riqueza de referências que, vistas à luz da tecnologia actual, parecem falar-nos diretamente de andróides, inteligência artificial ou biotecnologia. Histórias de deuses e mortais, criadores de guerreiros metálicos (como nos épicos de Jasão ou o mito de Talos, o guerreiro de bronze que protegia Creta). Estátuas que ganham o sopro da vida, como no mito algo misógino de Pigmalião, ou mulheres construídas para semear a discórdia pelo mundo. Adrienne Mayor leva-nos num périplo aprofundado pelos mitos, e vestígios históricos. O fio condutor é a tecnologia, nas suas vertentes de simulação de vida e criação de vida artificial. Mostra que as preocupações que hoje temos, de tecnologia fora do controlo, o que é, realmente, ser vivo quando os mecanismos simulam a vida, os riscos da tecnologia militarizada, estavam presentes na mitologia grega. Hoje, a ciência e tecnologia estão no limiar de nos colocar nas mãos meios de realizar os sonhos dos mitos. Mayor mostra-nos essa linha de continuidade, levando-nos a perceber o fio condutor cultural e de ideias que alimenta a busca incessante pelo elevar dos patamares do desenvolvimento tecnológico.

Inteligência Artificial, Arlindo Oliveira: Para quem já leu o Mentes Digitais deste autor, este livro vai parecer curiosamente comedido. E é esse o objetivo. O livro é um ensaio de introdução a este campo, escrito como divulgação científica. Nele, Arlindo Oliveira segue uma perspetiva evolutiva, traçando a evolução da inteligência da biologia à computação. Fala-nos das aplicações correntes da Inteligência Artificial, e aponta para as dificuldades técnicas e conceptuais de criar uma inteligência artificial consciente. Encerra com uma reflexão sobre o papel da civilização humana perante a imensidão cósmica, a possibilidade teórica de vida alienígena e o papel que a vida artificial poderá desempenhar. Uma leitura concisa, que consegue traçar um panorama abrangente deste campo, sem o aprofundar.

O (absolutamente) pior:

Granta Futuro, Pedro Mexia e Gustavo Pacheco: Apesar da qualidade literária, seria injusto não a apontar, esta Granta sobre o futuro consegue fugir quase completamente ao tema. Se querem refletir sobre as tendências que estão a modelar o futuro contemporâneo, não encontram por aqui praticamente nada sobre esse... que é apenas o tema da revista. Isto representa o academismo da literatura mainstream no seu pior. Encerrada nas dialéticas da sua torre de marfim, enfiando alegremente a cabeça na areia e recusando que o mundo está a mudar radicalmente. Até se percebe a atitude de avestruz, compreender estas mudanças obriga a arregaçar as mangas e vir até ao mundo das coisas complicadas com botões e software e mecanismos.