quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Sete Dias, Sete Livros

A alter-ego da Folha em Branco desafiou-me a participar nas correntes de partilha de capas de livros, naquela rede social de que todos dizem querer fazer detox, mas ninguém deixa realmente de frequentar (é uma questão geracional, os mais novos não lhe ligam e o espaço azul envelhece connosco).

Claro que simplesmente partilhar capas não me chega, e deixei umas notas em modo stream of consciouness. Porque, enfim, sou professor, e a minha profissão é, literalmente, dar secas com palestras e preleções.


Comecei pelo que me apaixonou pela FC no seu lado mais literário. E quanto a mim, todos os verões deveriam ser rocket summer.


Este, algo surpreendente para quem me conhece como geek. Desafio aceite. Desafio as pessoas seguintes a fazer o mesmo: bem, quem quiser alinhar, está à vontade. Uma das recordações giras de viagem que tenho é estar no minúsculo jardim botânico de gibraltar (nos devaneios de Molly Bloom parece bem maior) a ver uma alegre mamã a tirar selfies com a filha pré-adolescentes junto da estátua erguida em honra da personagem com o mais fantástico monólogo de Joyce. E pensar que a alegre mamã talvez não conhecesse os quentes devaneios da senhora Bloom sobre os viris dragões da guarnição do rochedo. Ou seriam hussardos? A memória falha-me.


 Este vem mesmo das profundezas longínquas do meu passado. Tive a infelicidade de aprender a ler antes de entrar na escola, com uma vóvó que me ensinou através do método da cartilha maternal João de Deus. Fiquei prematuramente contaminado pelo gosto pela leitura. Deixei de me conseguir tornar um tipo normal, daqueles que vibra com o futebol e gosta de publicar fotos de meninas voluptuosas levemente vestidas nas redes sociais. Aliás, tão anormal que utiliza o adjetivo "voluptuosas". Não sei se este foi o primeiro livro que li, mas é dos primeiros que recordo. Um livro marcante não tem de ser um clássico ou uma obra de vanguarda. Por vezes, é o mais simples e fugaz que se perdura, décadas em cima de décadas, na mente.


 Este, foi talvez o livro mais marcante na formação do meu modo de pensar. Com ele, aprendi o gosto pela curiosidade científica, pelo saber com rigor. Mas também o gosto pela evolução histórica das ideias, o perceber como o conhecimento, ou as tecnologias, evoluíram até ao momento presente e futuro próximo. O que mais me fascinou neste livro foi a forma como Sagan começava a falar de ciência indo ao passado, indo à história. Só muito mais tarde descobri o fabuloso Connections de James Burke, um incrível ligar dos pontos entre ideias e personalidades muito díspares. Mas foi Sagan quem me formou a curiosidade. Quem sofre são os meus alunos. Vêm para a sala a querer mexer nos computadores, e levam invariavelmente com a história da ligação entre Frankenstein e programação (que passa por Sintra, dark and stormy nights, feminismo, poesia, tragédias românticas, pneumonias fatais, génios falhados e uma condessa que adorava a matemática (e o jogo, mas essa parte não lhes conto).


Finalmente, uma capa verdadeiramente geek. Aliás, mais geek do que pensam. Quando me pus a matutar numa escolha de banda desenhada, ocorreu-me tanto... Watchmen e o seu incrível sentimento de realismo, os X-Men de Claremont que me viciaram em comics, ou Bilal, cuja feira dos imortais me foi apresentada pelo caro Diogo Águas naquelas tardes na esplanada da Ibiza (e mais tarde dissecado, junto com moebius e outras cenas, na irrepetível esplanada noturna do café que apelidámos de incongruente, tal o surrealismo aleatório do espaço). Mas lembrei-me disto. Não é a melhor história de Batman, e parece-me ter ficado completamente esquecido na história dos comics. Isto, para mim, foi tipo abre-olhos a sério. Anda uma pessoa a pensar que banda desenhada é feita com lápis e papel e aparece um tipo a criar exclusivamente no computador, totalmente em modelação 3D, nos idos dos anos 90 do século XX. Na altura não tinha nada a ver com computadores (ah, a ironia), mas o trabalho de Pepe Moreno levou-me a perceber que, se calhar, aquelas torres cinzentas com processador de 60 hz podiam ser usadas como ferramentas criativas. Claro que só décadas depois é que me meti mesmo a sério nisso. Um tour de force técnico, e talvez o livro de banda desenhada mais verdadeiramente cyberpunk que tenho na minha biblioteca. Curiosamente, parecia um indicador de estéticas futuras, mas nestes termos foi um beco sem saída. Se os meios digitais definem hoje, em grande parte, o método de produção de banda desenhada, replicam os estilos e técnicas tradicionais. Não há por aí artistas a desenhar comics estritamente em 3D.


Se cruzarem Borges, Kafka, Ben Katchor e doses massivas de jazz, sai-vos isto. Um trabalho de constantes e delicadas obras primas, onde o surrealismo literário dava o mote à banda desenhada. José Carlos Fernandes é um dos melhores autores de bd portugueses (sem desprimor para tantos outros que conheço, gosto e admiro) que, infelizmente, se cansou das vicissitudes de editar por cá e das pequenas guerras e intrigas de um meio culltural pequeno. Todos nós perdemos. E como A Pior Banda do Mundo convida ao estranho, não resisto a contar a peripécia dos meus livros (tenho a coleção original, e não as recentes edições da Devir) às mãos do Centro de Recursos Poeta José Fanha. Emprestei-os para seduzir a professora bibliotecária com o melhor da BD portuguesa, a ver se percebia que estava na hora de reformar os caquéticos astérix. Gostou tanto que os etiquetou e preparou para disponibilizar na biblioteca. Sou generoso, mas nem tanto... e assim se explica porque é que os meus seis volumes da série parecem ter sido rapinados a uma biblioteca. Têm carimbo, selo e cota...


Começou aqui a faísca da profunda paixão que sinto por JG Ballard. Muito antes de saber que foi uma voz fundamental para a FC na new wave britânica, que arrancou o género do conforto zonal da juvenilia e romance científico/de antecipação. Fiquei agarrado pela sua prosa fria, gelada, uso cirúrgico da palavra, personagens desapaixonados num constante jogo de paranóias, arquitetura modernista, piscinas abandonadas, resorts de betão decrépito na costa mediterrânica (não é por acaso que Aparelho Voador a Baixa Altitude de Solveig Nordlund é a adaptação cinematográfica mais fiel ao espírito ballardiano, muito além de Cronenberg), invocação constante de um surrealismo cristalino nas descrições. Sempre senti que este foi o autor que melhor transmitiu as pulsõesda humanidade do século XX. Penso na obra dele sempre que estou no asfalto automobilizado dos complexos de auto-estradas a rodear zonas de urbanização descaracterizada, contrastando o negro do asfalto com o azul do céu riscado por aviões a jato.