terça-feira, 26 de setembro de 2017
Homo Deus
Yuval Harari (2017). Homo Deus: A Brief History of Tomorrow. Nova Iorque: Harper.
Este é, provavelmente, o mais provocador livro deste ano. Ao fugir das premissas habituais que sustentam a discussão quando falamos do impacto da aceleração da evolução tecnológica, leva-nos a perceber, recorrendo ao passado, que o nosso futuro será radicalmente diferente do que o que acreditamos que será. Discussões sobre tecnologias NBIC (nano-bio-info-cogno) dividem-se geralmente em dois espectros, o do optimismo ilimitado, vendo-as como uma panaceia para todos os males do mundo, ou o alarmismo extremo, postulando futuros desolados onde o potencial libertador destas tecnologias beneficia enormemente uma elite rarefeita e passe ao lado de uma vasta humanidade empobrecida, num planeta em degradação ambiental.
O que Harari nos leva a reflectir, baseando-se numa análise erudita da evolução do nosso próprio sistema de ideias, aquele que sustenta o mundo contemporâneo, é que talvez estas duas vertentes não sejam significativas. Que o mundo que por aí virá poderá assentar em premissas radicalmente diferentes das que agora nos norteiam. Numa sociedade onde desde as doenças às emoções a biotecnologia pode intervir, onde a informação não é limitada, onde os meios de produção são automatizados, onde poderosos algoritmos guiam os comportamentos dos indivíduos, os conceitos que admiramos como base da nossa sociedade poderão ser irrelevantes.
É chocante perceber que ideias tão basilares como o humanismo individual, ética contemporânea ou a própria democracia poderão estar tão condenados como a sujeição dos indivíduos aos diktats da fé religiosa, sistemas políticos não representativos ou os próprios direitos humanos. Convencidos como estamos de que atingimos um ponto máximo de desenvolvimento social, comparativamente às eras que nos precederam, é temível pensar que as sociedades futuras poderão não considerar nucleares os nossos valores humanistas, de igualdade e democracia. Harari não nos dá respostas, não especula sobre que valores irão substituir os nossos, apenas demonstra o quanto os nossos valores evoluíram, enquanto questiona o futuro impacto direto das tecnologias NBIC que já permeiam o nosso dia a dia. Citando uma questão cujo impacto já sentimos, como é que conciliamos o conceito de democracia num mundo onde as perceções individuais são subtilmente condicionadas por algoritmos avançados? Ou, num sentido mais pessoal, o que acontecerá à ideia de liberdade individual numa sociedade onde algoritmos nos levam gentilmente a adoptar comportamentos considerados mais saudáveis? Ou o que determinará o verdadeiro valor da vida humana num futuro onde os mais afluentes terão acesso a bio-tecnologias de melhoramento de capacidades e longevidade? A esta luz, conceitos que nos são queridos como o mérito individual ou a igualdade perdem a sua importância basilar.
Neste livro, quer o transhumanismo optimista quer o pessimismo alérgico à tecnologia levam uma forte tareia. Harari mostra-nos que nas discussões sobre o futuro, enquanto assumimos que a médio e curto prazo as evolução das tecnologias vai mudar radicalmente o mundo como o conhecemos, assentamos na crença que os nossos valores basilares não irão sofrer transformações. Cremos que nesse aspeto atingimos uma espécie de topo absoluto de qualidade, que não haverá melhor, e por isso não há razões para se modificarem ou sequer se degradarem. Uma visão epocalista, que partilhamos com todos aqueles que, no passado, acreditaram piamente que os seus valores constituíam o tecto máximo do valor social, e acabaram consignados à poeira da história.