terça-feira, 22 de agosto de 2017
Anjos
Carlos Silva (2017). Anjos. Vagos: Editorial Divergência.
Com este romance, Carlos Silva cimenta o seu estatuto como uma das mais dinâmicas e interessantes novas vozes do panorama literário nacional dedicado à FC. Já o sabíamos com o projeto Imaginauta e as suas iniciativas, especialmente no universo partilhado Comandante Serralves. Neste Anjos, a sua voz pessoal está mais evidente, num esforço concertado e bem sucedido de criar um mundo ficcional sólido que sustenta uma história que, se remete diretamente para o cyberpunk clássico, acabar por tocar no âmago de questões estruturantes da nossa sociedade digital contemporânea.
Apesar da sua premissa pós-apocalíptica, Anjos dá-nos um futuro luminoso, embora sob ameaça que das velhas instituições quer de novas forças capazes de cooptar o poder do mundo digital. Carlos Silva coloca-nos numa Lisboa futurista, reconstruída sob moldes hiper-modernos após um devastador terramoto. Uma cidade funcional e moderna, a remeter para as utopias arquitetónicas contemporâneas. Os anjos a que o título se refere são um grupo muito especial, de mensageiros bem treinados que protegem os espaços de informação. Claramente são inspirados no melhor que os conceitos wikileaks/anonymous têm para nos oferecer. Independentes, após o terramoto assumiram o controlo de YHVH (referência à mitologia cristã percebida), uma inteligência artificial capaz de, num mundo hiperdigital, controlar e manipular toda a informação. Uma ferramenta de hipervigilância temível nas mãos de entidades governamentais ou corporativas, mantida segura nas mãos dos Anjos.
Quando estes começam a ser assassinados por um cyborg biotecnológico, pensamos que são as velhas forças que buscam eliminar os anjos para voltar a dominar o poder social. Que velhas forças? Políticos corruptos e empresas que não olham a meios para ter lucro. Há uma inevitável componente de crítica social ao estado contemporâneo das coisas neste livro. As linhas narrativas focam-se nas desventuras dos anjos, caçados mas a reagir defendendo a sua liberdade que, no fundo, é a liberdade de toda uma sociedade e protegendo o acesso à inteligência artificial, e as investigações de uma inspetora que descobre que o mundo normativo que sempre tomou como adquirido não é tão limpo e linear como acreditava. Pelo meio, tempos operativos de segurança privada, empresas avançadas de biotecnologia capazes de criar novos humanos, ativistas digitais que se escondem no anonimato e muita ação explosiva.
Mais do que uma simples história de entretenimento que se socorre de elementos cyberpunk, Anjos constrói-se a partir de reflexões sobre a sociedade panopticon decorrente da progressiva intrusão da digitalização sobre o espaço social. Carlos Silva leva para a ação de forma divertida mas bem medida os impactos da perda de privacidade estimulada pelas redes sociais, pelas capacidades inauditas de cruzamento de informação, definição e agregamento de perfis individuais em bases de dados massivas. Não é por acaso que os "bons" protegem o super-computador capaz de coligir todos os dados de uma sociedade que abandonou a privacidade em troca de acesso a redes ou promoções económicas (essencialmente, um retrato da nossa contemporaneidade), não é por acaso que (atenção: major spoiler) o grande vilão seja um elemento dos próprios anjos seduzido pelo enorme poder que o domínio da informação nas redes digitais lhe confere. Reparem que a nossa corrente vida digital, mediada por algoritmos opacos criados por empresas gigantes que dominam os fluxos de informação globais, e com isso a nossa perceção sobre os acontecimentos, alimenta de forma sumptuosa vários anjos caídos, cujas biografias conhecemos e admiramos.
O grande foco deste livro está na reflexão sobre privacidade na era digital e o resvalar para uma sociedade panopticon. Leio nele uma enorme influência da obra de Cory Doctorow, da qual a referência aos Little Brothers é o sintoma mais visível. Mas Carlos Silva foi ambicioso e ousou ir mais longe no seu mundo ficcional, extrapolando tecnologias presentes e de futuro próximo nos domínios do cruzamento entre automação, robótica e biotecnologias. Algo que nos revela sem infodumps, como elementos de cenário na narrativa, o que enriquece a experiência de leitura. Por último, foge à tentação grimdark do cyberpunk e dá-nos algo que rareia hoje, uma visão otimista do futuro. Sente-se, nas palavras do autor, descrições luminosas dessa Lisboa reconstruída que sustenta a ação de Anjos. E há que adorar o pormenor final de transcendência do humano para o digital. Uma das tropes clássica do cyberpunk, a que Carlos Silva só cede no final.
Romance prémio Divergência, Anjos surpreende pela sua ambição e seduz pela forma como conduz a ação pelos seus pressupostos. Fundamentalmente uma história de ação, não se nega a reflexões com impacto direto na nossa perceção do mundo contemporâneo. Um excelente trabalho de um escritor que tem provas já dadas quer como autor quer como dinamizador cultural. Uma nota especial para a capa, com a forma simples mas eficaz como usa a glitch aesthetic para nos desperta logo as emoções para o mundo virtual.