sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Breviário para um Extermínio Silencioso



Corporate drone. Não sei traduzir esta expressão, que descreve muito bem aquelas pessoas com que nos cruzamos que parecem incorporar os ideais corporativos das empresas onde trabalham. São detectáveis à distância. Usam uma espécie de uniforme, com fato de corte e gravata de cor suavemente berrante, ou tailleur com adereços de moda, a projectar uma imagem de dinamismo conservador e próspero. Comportam-se como alfas obedientes aos ditames da alcateia, exageram num optimismo constante, e têm no olhar a indisfarçável expressão de nos considerarem descartáveis assim que os seus objectivos são atingidos. São capazes de defender o indefensável e torná-lo aceitável utilizando expressões difusas, sinónimos suaves de palavras atrozes, que disfarçam a dureza e frieza do que nos querem impor a bem da nação ou da organização, sempre com sorridentes como deve compreender ou mas repare que ou o cumprimento do disposto é o desejável ou temos de ser responsáveis. Talvez, fora das horas de expediente, regressem à normalidade e voltem a ser humanos com sentimentos e desejos. Talvez tenham no coração os chavões repetidos até à exaustão nos retiros corporativos para onde vão regularmente fazer bonding e outras palavras estrangeiradas que soam modernas. Suspeita-se que em muitos casos a infecção viral da cultura corporativista estaja demasiado entranhada no organismo e se tenha tornado incurável.

Breviário para um Extermínio Silencioso é uma peça de ironia discreta mas cortante que toca nesta despersonalização do ser face à instituição corporativa economicista, que exige a sobreposição dos seus objectivos e projecções milimetricamente traçadas nas simulações económicas às necessidades humanas. É uma pura distopia económica. Estamos no século XXI. As distopias políticas ou pós-apocalípticas já não descrevem a ansiedade que sentimos perante a sensação opressiva transmitida pelas forças que movem o mundo. Já não tememos regimes totalitários nem desertos atómicos. Agora é a submissão do indivíduo face à projecção económico-financeira, ao memorando de entendimento, ao contratualizado, o que nos aterroriza. Porque sentimos a desconexão entre a necessidade de justiça e humanismo e a bonomia que tenta disfarçar a tirania institucional. Como observa certeiro o encenador Rui Neto, "a desapropriação de todas as liberdades individuais em função de uma lógica empresarial e do lucro, é a estratégia adoptada, silenciosa, invisível, maquiavélica e não inocente (...) como uma contracção da liberdade (até de pensamento), para um futuro social de escravatura". Aspectos em evidência no texto de Mike Bartlett, levado à cena pela Escola de Mulheres - Oficina Teatro.

Carla Chambel é uma jovem funcionária a quem a sua gerente faz exigências cada vez mais desumanizadas, em nome do estrito cumprimento da regras estabelecidas. Exigências duras, colocadas sempre com um sorriso, sempre com palavras amigáveis que avisam que o que pensamos que nos faz mal afinal não faz ou que o que não queremos é realmente o que queremos. Retrato hiperbólico das relações laborais na sociedade neoliberal, onde cada vez mais as escolhas se restringem ao consumo e a necessidade de manter o emprego se sobrepõe a tudo o resto. Isabel Medina é a gerente, intencionalmente representada num misto de Alice e da lagarta azul de Alice no País das Maravilhas na versão dos Jefferson Airplane. Questionadora implacável, desumana nas suas imposições, esmagadora na forma como verga os subordinados à vontade corporativa, sempre de sorriso melífulo e voz compreensiva.  Roger Madureira é o lacaio perfeito, autómato discreto e obediente. São interpretações fortíssimas, sempre a caminhar na fronteira entre a ironia e a frieza, mantendo o dramatismo sem resvalar na caricatura.

O cenário é espartano, centrado na interacção fria entre as personagens. Tem um detalhe intrigante que remete para as problemáticas da sociedade panopticon possibilitada pela tecnologia digital. Duas televisões que nos mostram vídeos cada vez mais invasivos da privacidade da personagem, símbolos da videovigilância pervasiva e da intromissão por sistemas digitais da intimidade individual em nome da segurança e da eficiência. Um detalhe arrepiante, apropriado a esta era em que os nossos amados dispositivos encerram em si a promessa de imposição de hipervigilâncias perante as quais os piores excessos dos regimes mais totalitários empalidecem.

Para conhecedores de ficção científica, textos deste género e as reflexões que suscitam são terreno bem conhecido. Fora deste contexto de nicho surpreendem, e são levados a alguns exageros melodramáticos para impressionar leitores e espectadores. Senti isso neste texto, com algum levar da espiral de tortura psicológica sobre a personagem vitimizada a exageros melodramáticos quando a lógica das ideias e a reflexão que provocam já estava bem definida. Esta é uma refilice válida para quem conhece bem as distopias de FC mas compreende que o público mais mainstream não está habituado a reflectir em certas consequências do papel das tecnologias e organizações sobre o espírito humano na tradição iluminista. Note-se que esse melodrama está ausente das interpretações, mantidas numa continuidade de frieza e distanciamento que sublinham a falta de humanidade presente na cultura corporativa contemporânea que a peça nos quer mostrar.

Breviário para um Extermínio Silencioso está em cena no local surpreendente do Espaço Escola de Mulheres - Clube Estefânia, em Lisboa, até ao dia 14 de novembro. Podem saber mais na página facebook da peça. Zona tramada para quem vive fora da cidade e depende do automóvel para poder participar nestas actividades culturais, mas a peça faz valer bem a pena. O texto interessante, representações acutilantes, e uma ambiência imersiva fazem deste um espectáculo teatral a não perder.