Flow My Tears, the Policeman Said, é talvez dos romances de P. K. Dick que mais gosto. Quando o li na edição da Europa-América, com o menos poético título de Vazio Infinito, aprendi o gosto pelas ficções que questionam o real. Ou melhor, que colocam em dúvida a imutabilidade tangível da realidade e que, sem artifícios tecnológicos, com apenas minuciosas diferenças de percepção, nos levam a outras possibilidades do real. Sempre achei Dick como um dos mais psicológicos escritores de FC, que nos mostra como a realidade que construímos na nossa mente depende muito da forma como a percepcionamos, por muitas pedras que os bispos de Berkeley pontapeiem para provar a sua sólida tangibilidade física.
No romance, Jason Taverner é um famoso apresentador de televisão que ao regressar a casa no final de um espectáculo se descobre numa realidade paralela onde ninguém o conhece, onde nunca existiu. Esta queda nas frestas dos interstícios do real é algo recorrente na FC ou Fantasia mais metafísica, e não cessa de despertar o imaginário.
Flow, my tears, fall from your springs!
Exiled for ever, let me mourn;
Where night's black bird her sad infamy sings,
There let me live forlorn.
O título extraordinário deste romance foi inspirado no poema musicado em ária da pavana Flow My Tears de John Dowland. É uma combinação assombrosa de alaúde, voz e melancolia que a torna uma daquelas peças que nos faz parar e expandir as fronteiras do imaginário. Uma peça que em todos estes séculos não perdeu o seu poder mesmerizador. Diga-se que Dowland era imbatível nas canções melancólicas acompanhadas ao alaúde.
Esse é o tom que recordo da obra de Dick. A incredulidade que dá lugar a um desespero melancólico. O percurso do protagonista, dos altos da fortuna ao oblívio, espelha bem o poema da ária de Dowland:
Never may my woes be relieved,
Since pity is fled
caracteriza bem os sentimentos de um Jason Taverner que
From the highest spire of contentment
My fortune is thrown;
And fear and grief and pain for my deserts, for my deserts
Are my hopes, since hope is gone.
Taverner, disseram? Diria que este romance de P. K. Dick é, entre o muito que é, também uma forte homenagem à música antiga. No seu personagem reflecte o nome do compositor inglês do século XVI John Taverner. Se não me falha a memória, há uma rezinguice de Dick sobre a ascensão de Bach e o esquecimento de Taverner como entrave à evolução da abstracção na música. Não me consigo recordar é de qual romance memorizei esta passagem. Terá, talvez, sido em Do Androids Dream of Electric Sheep ou Os Jogadores de Titã?
A falibilidade da memória é um dos sintomas que leva à melancolia.