sexta-feira, 19 de junho de 2015
Seveneves
Neal Stephenson (2015). Seveneves. Nova Iorque: William Morrow.
Este livro deixa-nos indecisos. Pode ser excelente, mas há coisas nele que não jogam bem. A visão é ambiciosa, e há algo de utopia desenfreada na forma como o autor leva a humanidade à beira da extinção para a reinventar. É um livro que vive de exageros absolutos e um espírito de missão ideológica muito vincado. Warren Ellis descreveu-o como um momento Heinlein na carreira do autor, algo que foi escrito para experimentar o estilismo e ideologia e que, mesmo descontado o envolvimento de Stephenson no movimento Hireoglyph, é atípico na visão catastrofista e utópica.
Aviso à navegação. Este é um daqueles livros que não se consegue parar de ler. Ando com uma epidemia de olheiras por causa das longas horas e noites que se arrastaram até à madrugada em leitura quase obsessiva. Stephenson é um contador nato, e neste Seveneves, apesar manter as contagens elevada de páginas quel são típicas deste autor, não revela tanto a tendência que descarrilou Reamde de se perder em páginas infindas de pormenores irrelevantes descritos até à pormenorizada exaustão.
Stephenson assenta numa hard SF duríssima, cheia de especulação futurista informada que extrapola tendências e tecnologias contemporâneas no domíno da genética, aeroespacial, informática e engenharia estrutural. Tempera com o optimismo do grupo Hieroglyph, de futurismo aberto e visões empolgantes que se tentam contrapor ao catastrofismo grimdark que reflecte as crises da nossa era contemporânea. Mas ao levar as especulações ao limite estica muito os limites da Hard SF, o que é bom, mas deixa para trás alguns pormenores estruturais, talvez para tornar a visão narrativa mais abrangente e empolgante. Assume o desespero tranquilo que pervade uma obra como On The Beach de Nevil Shute, onde após uma guerra nuclear os sobreviventes se resignam à morte por radiação nas zonas não afectadas por explosões atómicas mas ameaçadas por uma nuvem radioactiva que se espalha inexoravelmente pelo planeta.
Há uma coisa que incomoda neste livro. A premissa transforma a ideia da sobrevivência da humanidade face a ameaças cósmicas numa urgência, com a lua a ser atingida por um evento que a fragmenta. A princípio a humanidade habitua-se a olhar para cima e ver fragmentos no lugar da esfera lunar, mas os cientistas depressa se apercebem que os inúmeros fragmentos lunares irão cair sobre a terra, provocando uma chuva tremenda de asteróides que irá devastar o planeta. A humanidade descobre-se com um prazo de dois anos para se tentar salvar. O que fazer?
Neal Stephenson lida com a tragédia imediata que se abate sobre todos com a destreza emocional de um autista profundo. Face à morte imimente, governos e populações afadigam-se num projecto de criar à pressa uma base espacial para procurar salvar uma réstea de humanidade. Dado o fascínio do autor por exploração espacial, a possibilidade de refúgio subterrâneo mal é aflorada e segue-se logo para as possibilidades da vida orbital. E é aí que os problemas começam. Stephenson dá-nos uma wild ride de hard sf, criando um refúgio orbital a partir de tecnologias hoje existentes. E em toda a história de sobrevivência passa ao lado do óbvio problema dos recursos. Naves espaciais são construídas de materiais complexos, os computadores precisam de chips, as baterias degradam-se, os bens alimentares e medicinais esgotam-se. A resposta em como sobreviver quando o cordão umbilical com a Terra se quebra (porque a civilização humana é aniquilada) é uma resposta a que Stephenson foge.
O livro está cheio daquele optimismo sillicon valley, do sim podemos, e sim, vamos fazer, de desenrascar tecnologias e seguir metodologias pouco convencionais, de supremacia conceptual de iniciativa privada sobre instituições científicas. Expande o universo conceptual de Hieroglyph com aquilo que se pode apelidar de de tecnocracia maker/empreendedorista. Ideário que não surpreende, vindo de quem vem. Mas ao apostar tão cedo no absoluto, no argumento da extinção iminente da vida humana apenas evitável por uma ténue jangada no espaço, Stephenson pede-nos uma extensão excessiva da suspensão de descrença. Leva ainda mais longe a docilidade da extinção em que Shute baseia On The Beach.
É sintomático que Stephenson leve a humanidade à beira da extinção por razões sociais e não técnicas. Após a catástrofe que arrasa o planeta (e se prolonga por milénios) os sobreviventes estão divididos entre uma ISS expandida aos limites e um enxame de módulos em órbita. A chegada, no último momento possível, da última presidente americana é ao mesmo tempo uma boa maneira de meter o discreto X37 na história e de desiquilibrar a coesão social. Mesmo enfrentando a extinção, as relações clássicas de poder mantém-se e o choque com a liderança dos astronautas é inevitável. Um grupo solta amarras e decide ir para marte, provocando um acidente que danifica seriamente a estação. Outro grupo, liderado pela ex-presidente, afasta-se da estação espacial e muda de órbita, declarando uma espécie de independência. Resta a cada vez mais diminuta tripulação original para assegurar uma viagem da estação até aos restos da lua, com ajuda de um pedaço de gelo de um cometa resgatado por uma expedição heróica e suicida de um magnata da exploração espacial privada.
Anos depois, porque a mecânica orbital assim o obriga, o que resta destas duas humanidades dividas volta a unir-se, e começa aí o momento mais perturbador do romance. Se entre os astronautas da ISS a mortandade por atrito foi elevada (acidentes, suicídios e degradação física por malnutrição e exposição aos rigores do espaço), a situação no enxame é ainda pior. Das centenas de sobreviventes restam dez, depois do colapso dos sistemas de produção de comida que reduziram as tripulações ao canibalismo. E nesse último momento possível, ainda se mantém as lutas de poder e a vontade de um grupo dominar outro. Claramente Stephenson não acredita na viabilidade dos sistemas morais, preferindo claramente a tecnocracia ténue dos engenheiros. No final, dos milhares de sobreviventes em órbita restarão oito mulheres, que alunam num pedaço da lua e, com ajuda de máquinas de sequenciação genética, irão reiniciar a espécie humana. Aqui nova dificuldade, uma vez que não há homens disponíveis nem restam as amostras criopreservadas de biodiversidade enviadas para o espaço, perdidas em vários acidentes. Resta uma enorme base de dados de pesquisa biomédica e um arquivo de adn digitalizado. E uma bióloga que mistura partenogénese com inseminação artificial para inseminar sete das oito sobreviventes, que irão gerar uma nova humanidade.
Explica-se aqui o título do livro, Seven Eves, sete evas cujos úteros reiniciarão a humanidade a partir dos restos da lua. Suspeito que o número sete não esteja aqui por acaso, dada a sua fortíssima carga simbólica e mítica. Gerar humanos com recurso à engenharia genética permite modificar os parâmetros naturais, e Stephenson claro que segue esse caminho. Dá um salto de 5000 anos e leva-nos a um futuro radioso, com a humanidade espalhada por habitats orbitais a terraformar a Terra, dividida em sete raças que mantém os traços genéticos e comportamentais das suas Evas originais. Mas o que marca é esta atitude de supremacia da técnica sobre o social. Stephenson não foge ao atrito sobre recursos tecnológicos, mas deixa sempre bem claro que o problema real são os humanos e, muito literalmente, leva a sua visão da humanidade ao absurdo lógico, depurando-a de todos os elementos, condensando-a em sete representantes cujas imperfeições são eliminadas pela aplicação judiciosa da genética.
Saltamos 5000 anos, para um futuro em que a humanidade sobreviveu se espalhou pela órbita terrestre. Fieis às raízes, esforçam-se por terraformar o planeta terra, com os seus recursos e capacidades de engenharia clássica e biológica. Os diferentes ramos das sete evas dão origem, com boas doses de manipulação genética e comportamental, a sete sub-espécies de humanidade de culturas e aspectos fisicos diversos. Há uma divisão dualista, com duas facções que mantém entre si o mínimo possível de contactos e estão permanentemente à beira de uma guerra civil. Apesar de depurada, a humanidade mantém os velhos vícios. Num ponto intrigante, estes futuros humanos são mega-engenheiros de excelência, capazes de construir habitats orbitais e terraformar o planeta berço, mas as suas tecnologias digitais estão aquém do que foram nos tempos pré-catástrofe, por escolha civilizacional. É um aceno moralista de Stephenson àquele ideário que lamenta a nossa capacidade tecnológica atingida em aparente detrimento de outras vertentes. Traduzindo: temos nos bolsos dispositivos computacionais altamente potentes, mas mal conseguimos passar da órbita baixa e não construímos mega-estruturas. Um moralismo que esquece que os avanços que levaram o homem à lua foram motivados não pela vontade do progresso mas por imperativos políticos e geo-estratégicos. A nação cujos foguetões fossem capazes de levar o homem à lua garantia que mostrava que os seus mísseis chegavam mais longe que os dos inimgos.
Esta terceira parte é Stephenson a oscilar entre o seu pior e melhor. O arco narrativo envolve um atar de pontas soltas que o autor deixou na primeira parte. Enquanto o cerne da sua história se centra nos sobreviventes refugiados em órbita, deixa algumas linhas narrativas onde grupos específicos se preparam para a catástrofe terminal refugiando-se em túneis profundos ou, com acesso a submarinos nucleares, nos abismos oceânicos. Se sobreviveram é uma pergunta que se vai mantendo ao leitor curioso em pano de fundo ao longo do livro, e a resposta surge neste terceiro capítulo, com o primeiro contacto, em embate violento, entre os descendentes do espaço e os descendentes dos que se refugiaram nas profundezas. Stephenson reflecte a cultura dos habitantes das cavernas como rígida e retrógrada, apesar de manter a literacia e saber tecnológico, com ênfase na patriarcalidade. Da cultura dos sobreviventes vindos dos oceanos pouco nos é revelado, preferindo olhar para as adaptações biológicas que permitiram aos humanos sobreviver debaixo de água. Este final oscila entre infodumps especulativos interessantes e périplos pelos habitats orbitais e terra a reviver de vida, mas a sua força está numa longa aventura de sete espaciais que vão investigar os mistérios dos homens subterrâneos. E aqui é Stephenson no seu mais banal, centrado na acção e aventura, largando a Hard SF que caracteriza o livro para tocar num tipo de história quase pulp.
Incómodo e desafiante, imbuído da Hard SF clássica e espírito heinleiniano, é uma leitura imparável que encanta pela suas especulações tecnológicas informadas e visão magnificente de longo prazo. Talvez, embora seja prematuro dizê-lo, um dos melhores livros de ficção científica deste ano. Concorde-se ou não com o ideário, a técnica narrativa de Stephenson é imbatível e as imagens que invoca perduram na mente do leitor.