Por onde começar? Talvez por dizer finalmente. Há anos que circulava pelos festivais ligados ao fantástico um divertido teaser para uma proposta de série televisiva que encantava quem o via mas parecia nunca mais conseguir passar disso. Sabemos que Portugal é um país inclemente para ficções de género e que os media tradicionais preferem reality shows, concursos e telenovelas. Admirável, a persistência da equipa, mas pensei que se ficasse por um eterno vaporware, mais uma promessa do que poderia ser mas que nunca aconteceu. Até que vi os cartazes e o forte investimento publicitário neste filme. Conseguiram concretizar a promessa, não em mini-série televisiva mas como filme. E ainda bem. O público, quer o mais ligado aos géneros quer o grande público, ficou a ganhar.
Quanto ao filme, é exactamente aquilo que quem conhecia os teasers esperava. Fortemente estilizado, intencionalmente exagerado, sátira ao antigo regime misturado com vénia aos super-heróis clássicos da Golden Age. O herói fascista Capitão Falcão e o seu companheiro Puto Perdiz são uma óbvia e assumida mistura do Batman e Robin campy dos anos 60 com Green Hornet. Todo o filme é um elogio à estética berrante e inocente da filmografia de série B. É um decalque que funciona muito bem por ser assumido e desprendendido. A história satiriza o nostalgismo estado-novista com um personagem acima de tudo fiel ao presidente do conselho de ministros, capaz de com o seu eficaz porrete travar as insidiosas ameaças dos perigosos comunas, decadentes liberais, libertários Capitães de Abril e demais ameaças à estabilidade da lusa pátria e nação. Uma história que decalca o simplismo dos comics de super-heróis com uma corrosiva e fervilhante ironia à história de um Portugal recente que muitos gostam de olhar com uma nostalgia branqueadora.
A excelência do argumento, divertido, ritmado, assumidamente previsível e a brincar muito bem com todos os lugares comuns quer do género quer da época fascista é complementada pelos aspectos técnicos do filme. A cinematografia é fantástica e a fotografia acompanha-a. Pessoalmente fixei os raccords temporais com as Portas do Sol ribatejanas ou a intencionalmente má montagem do Capitão a conduzir a sua mota com sidecar sob imagens de ângulo mal sincronizado de movimento na estrada. Mas há muitos outros momentos destes. Até porque este filme não descura pormenores. A direcção de actores mantém a credibilidade em ambiente de exagero e Gonçalo Waddington, como protagonista, passeia-se muito bem nos campos do exagero absurdista com uma cara de pau impressionante. Destaque também para as coreografias das cenas de luta, a cargo da MadStunts, muito acima do que se esperaria por cá. A realização de João Leitão é impecável.
Esta talvez seja uma das melhoras formas de comemorar os 41 anos do 25 de abril. Sendo um filme feito por fanboys que deixa os públicos de fanboys deslumbrados, é suficientemente divertido para cativar outras audiências e, esperemos, sustentar-se. Tendo em conta o tocar num ponto sensível da história contemporânea e ser um filme de estilo pouco usual no panorama cinematográfico português, estou surpreendido por não ver uma aliança de revisionistas/saudosistas dos tempos da velha senhora e estetas do fílmico nacional-sublime a insurgir-se contra este filme tão fresco, de estética tão marcante, influências vincadas de género e que de piada em piada nos vai recordando o cinzentismo monolítico do estado novo. O absurdismo desperta o pensamento e enquanto vemos paradas de moços da mocidade portuguesa ou o Capitão a dar tau tau em feministas percebemos este exagero tem raízes históricas bem conhecidas e podemos hoje sorrir em liberdade com os anacronismos de uma ditadura provinciana que manteve Portugal mergulhando durante mais de quarenta anos no obscurantismo.
A não perder, esta pedrada no charco do cinema nacional, que consegue ter um pé no género e outro no popular sem perder o equilíbrio. Aliás, tendo em conta a mediocridade dos recentes filmes do género fantástico portugueses (a âncora transmedia que é Collider e o passeio de canastrões de RPG), diria que é imperdível e marcante para a cultura do fantástico e ficção científica nacional. Mas já sabíamos disso há anos. Felizmente confirmou-se.