quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
Interzone #255
Termina aqui a minha leitura à bruta das Interzones que tinha em atraso. Ufa. E fica-se com a sensação de dever cumprido. Ler desta forma, em sequência rápida, permite perceber que o grosso da ficção publicada se fica pelos limites do gosto estabelecido no público de FC, apesar da revista investir em contos mais experimentais, mantendo um pouco da tradição inovadora que herdou da New Worlds. No global não são leturas inspiradoras. Apesar dos esforços dos escritores, percebe-se que a maior parte deles não atingirá públicos e reconhecimentos. Mas também é para isto que este género de revistas serve, dando voz a autores novos num nível de prestígio acima da publicação online, alguns dos quais poderão vir a ser as novas vozes que determinarão o futuro da FC. Algo que publicações mais fossilizadas como a Asimov ou Analog não fazem, mantendo-se na monotonia do mesmo de sempre ficcional, laudando vozes que nada de novo trazem como as esperanças de futuro do género. Das raras vezes que se atrevem a publicar algo de diferente são impiedosamente atacadas pelos leitores, algo que comprovei pelas reacções violentas dos leitores ao sacrilégio que foi a Analog publicar um conto de Lavie Tidhar. As space operas, a hardSF tecnófila, o imaginário dos alienígenas e a FC clássica são interessantes, e ainda bem que permanecem vivas, mas o género não pode fossilizar-se dando aos fãs mais do mesmo de sempre se se quiser manter pertinente.
A vertente de crítica literária e cinematográfica é outro dos aspectos que me traz à Interzone. Nos livros o equilíbrio entre vozes novas, autores consagrados, conto e ensaio é muito bom. No dvd e vídeo os lançamentos reflectem uma curadoria cuidada e no cinema fico sempre surpreendido com a quantidade de filmes de FC puro que o crítico de cinema da Interzone apanha todos os meses. E nós por cá tão sequiosos.
Outro aspecto a destacar, muito perceptivel se se ler um conjunto de revistas em sequência, é a importância dada à qualidade gáfica das ilustrações. As capas são sempre evocativas do melhor da tradição iconográfica da FC e cada conto conta sempre com uma ilustração de grande qualidade. Continuo fã da revista. Ir a Lisboa, atravessar a Avenida da Liberdade para entrar na já clássica Tema para adquirir a Interzone mais recente é daqueles hábitos que me dão imenso gosto. Infelizmente, apesar da carteira discordar desta ideia, a revista é bimestral...
Must Supply Own Work Boots - Malcolm Devlin: um conto muito eficaz, sobre a obsolescência humana perante os caprichos da técnica. Um operário de estaleiros espaciais prepara-se para investir numa nova versão dos seus implantes aumentativos para poder recuperar o emprego. Os trabalhadores necessitam de implantes para poder executar os seus trabalhos mas a empresa dona dos estaleiros tem um rápido ciclo de desenvolvimento de novos métodos laborais. Trabalhadores com versões anteriores de implantes descobrem-se desempregados, inimpregáveis face a um progresso tecnológico que os tranca numa espiral de constante endividamento para se manterem actualizados face às imposições tecnológicas. Uma metáfora óbvia sobre os piores excessos do capitalismo pós industrial neo-liberal.
Bullman and the Wiredling Mutha - RM Graves - daqueles contos que me faz perguntar o que é que se terá passado na cabeça dos editores para o terem publicado. Percebe-se, é arriscar no lado experimentalista literário da FC, muito necessário nos dias de hoje para abrir novas vertentes que contrariem a monotonia temática e narrativa da FC mais mainstream. Por outro lado, se imaginarem o Incrível Hulk a tentar filosofar sobre as agruras da vida grunhindo em monosílabos, já não precisam de ler este conto. A coisa boa das experiências é que umas falham e outras acertam. Esta pertence à primeira categoria.
The Calling of Night's Ocean - Thana Niveau: um conto algo banal sobre cientistas a tentar comunicar com golfinhos, contado alternando o ponto de vista do inquieto cientista com o olhar do golfinho, incrédulo perante a incapacidade do mamífero que mal sabe nadar em compreender as mensagens telepáticas que lhe envia. As coisas pioram quando o cientista decide introduzir LSD na experiência. A trip do golfinho revela o horrendo segredo sobre a malvadez trazida à natureza pela humanidade. Se é interessante pelo conceito de comunicação inter-espécies, preso a um apêndice difuso de possibilidade de comunicação com extra-terrestres, perde-se numa poesia hippie de amor entre os golfinhos e a humanidade acentuada pelas maldades trazidas pelo gosto humano pela guerra e tecnologia. Fiquei com a vaga sensação de ter lido uma versão anterior deste conto, às voltas com uma cientista cujo elo de comunicação com os golfinhos se torna tão intenso que causa escândalos de suspeita de envolvimento romântico, talvez noutra Interzone ou na Analog, embora não consiga encontrar a referência em lado nenhum. Mas sei que li um conto mediano sobre uma cientista, as suas emoções pelos golfinhos, e um centro de investigação numa ilha remota fechado por pressão após escândalos com a percepção sobre o tipo de pesquisas que lá se fazia. Estranho. Talvez o legado deste conto seja ter-me implantado na mente a certeza de já ter lido algo similar no passado? Hmm. Ideia creepy, e como a autora se assume como escritora de horror, apropriada.
Finding Waltzer-Three - Tim Major: um toque de navio assombrado à deriva, mas no espaço, quando um casal de tripulantes de uma nave de exploração se depara com o mistério de uma outra nave perdida no espaço. Entrar na nave adensa o mistério. Tudo funciona, mas os tripulantes deixaram-se morrer vestidos com as melhores fatiotas à mesa de um farto banquete. Nada mais nos é revelado, mas quando a exploradora regressa à sua nave pede ao companheiro para acordar o resto da tripulação do sono criogénico, porque se sente com fome. Um conto muito visual de ambiência marcada, que soube a pouco.
Oubliette - Catherine Tobler: Alguém é escondido numa sala recôndita de uma estação espacial decadente. Talvez por causa de algum artefacto oculto. E pronto. Pouco mais se leva deste conto eminentemente esquecível.
Mind The Gap - Jennifer Dornan-Fish: uma inteligência artificial aprende a ver o mundo através de conversas com uma das cientistas que a criaram. A forma como nos é descrita a evolução de sentidos avassalados em percepções é interessante, mas acaba numa nota delicodoce quando a IA decide começar a transmitir mensagens para mudar um mundo sob ameaça. Não que seja uma ideia inválida, mas é muito óbvia.
Monoculture - Tom Green: uma distopia futurista intrigante. Com a humanidade quase extinta por uma pandemia global de gripe viral, apenas sobrevivem os raros humanos auto-imunes. Mas a luz da civilização continua a brilhar graças a um outro grupo de sobreviventes, todos clones de um milionário tecnológico do século XX que legou a sua auto-imunidade e alergia a sabores intensos a estes estranhos herdeiros da humanidade. Imaginem um futuro onde todos são iguais até ao nível do código genético, e percebem a ironia deste conto eficaz.