terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Ao Gosto do Freguês
John Layman, Rob Guillory (2014). Tony Chu Detective Canibal Volume Um: Ao Gosto do Freguês. Roskilde: G.floy.
Estou incrédulo. Como é que esta série nunca me cruzou o radar? De facto já cruzou, mas o ar vagamente policial e as capas cartoony nunca me tinham cativado. Infelizmente. E depois de ter lido este primeiro volume na tradução portuguesa editada pela G.Floy, bolas, só penso que tenho estado a perder uma belíssima série de fantástico com toques de policial e horror, e muita, muita ironia no argumento.
Fiquei cativado pelo ambiente transreal numa américa onde a F.D.A. impera e o consumo de carne de aves é proibido após uma pandemia global de gripe das aves. Um franguinho assado ou umas coxinhas fritas tornam-se mais apetecíveis e lucrativas do que umas gramas de pó de talco colombiano ou psicotrópicos raros. As autoridades sanitárias imperam, protejendo o público dos malefícios do ovo estrelado e da canja de galinha, porque, dizem, o combate à gripe aviária está acima de tudo. Dizem, autoritários, porque diz-se que talvez não seja bem assim. Mas quem isto o diz acaba normalmente encerrado num centro de detenção para radicais.
Neste mundo tão culinário há pessoas com poderes curiosos. Tony Chu, Chew no original, tem o dúbio dom de sentir impressões psíquicas de qualquer coisa que coma. Excepto beterrabas. Esse dom torna-o muito útil como detective ao serviço da F.D.A.. Basta-lhe dar umas dentadas num cadáver para o identificar e saber o que lhe provocou o estado pós-terminal. Dons que partilha com o seu colega, Mason, e com a mulher com que se apaixona. Se bem que esta tem como variante uma capacidade inaudita de descrever por palavras o sabor da comida que prova. Algo que se torna hilariante quando esta se farta do que anda a fazer e publica uma série de crónicas no jornal sobre os piores locais onde comer, que provocam uma epidemia emética pela cidade. Chu apaixona-se, combate gangs de traficantes de frango, enfrenta combatentes armados pela liberdade culinária e resolve crimes mordiscando iguarias revoltantes.
Ter um personagem principal que resolve crimes comendo os mortos seria, e creio que é, um excelente enredo de horror. Recordo algumas partes particularmente vívidas de Necroscope de Brian Lumley com áugures soviéticos que se banhavam nas vísceras de cadáveres. Mas Chew não trilha esses caminhos. Trata-se de distopia irónica, com os proibicionismos da carne de frango a espelhar como vertente mais óbvia a época da proibição do alcool, mas a tocar mais fundo nos atropelos da guerra às drogas e nos consensos sociais impostos pela política. O foco gastronómico fez-me recordar o manga cómico Oishinbô - A La Carte, onde a essência está no degustar.
O estilo gráfico, leve e a puxar para o cartoon, segue em grande ritmo os argumentos vívidos e bem estruturados. Somos sempre mergulhados de chapa em aventuras que começam in media res, retrocedem e surpreendem sempre com um plot twist intrigante. O humor seco, visceral de uma tão profunda ironia que chega a ser cortante torna irresistível esta série da Image. É trazida ao público português pela G.Floy, que também se está a atrever a publicar a imprescindível Fatale, com mulheres fatais e horror lovecraftiano de Ed Brubaker e Sean Philips, e o popular Saga.