quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ficções


Desde la Tierra más allá del Bosque: Há aqui um certo ar de transgressão de propriedade intelectual neste divertido cruzamento entre Sherlock Holmes e Drácula. Martinez leva-nos ao dealbar do século XX, com Sherlock e o seu fiel companheiro Watson a depararem-se com um tétrico mistério onde um aristocrata britânico morre em circunstâncias suspeitas mas após o funeral é visto durante a noite pelas ruas de Londres. Um àparte: esta questão de Watson como fiel companheiro de Sherlock é sugerida por Martínez em níveis de companheirismo que empalideceriam Conan Doyle. Mas apenas sugerida. Entretanto, o Doutor Seward, proto-psiquiatra do romance de Bram Stoker, regressa às terras da Transilvânia para participar num congresso de alienistas e, movido pela curiosidade, decide visitar as ruínas do castelo de Drácula. Aí apercebe-se que afinal a tremenda luta sua e dos seus companheiros não conseguiu eliminar de vez o decano dos vampiros, que voltou a adquirir forma corpórea e regressa a Londres com nefandos propósitos.

A partir daqui já se está mesmo a ver por onde vai andar esta história. É uma mescla divertida dos mundos  ficcionais de Stoker e Conand Doyle. Temos Holmes todo contente por encontrar em Drácula um adversário à sua altura, algo que não sucedia desde o desaparecimento do Professor Moriarty, o habitualmente panhonha Inspector Lestrade a ser... panhonha, e Watson como fiel cronista. E temos o imortal vampiro, imune às estacas e decapitação graças a uma arcana capacidade de eliminar espíritos vivos e manter os agora catatónicos corpos como receptáculos vazios para refúgio em caso de necessidade extrema, perseguido pelo impiedoso Van Helsing e com Seward a relatar no estilo diarista do romance. Este é um dos bons pormenores desta novela. Martínez replica as vozes de narrador interveniente de Conan Doyle e de fragmentos diaristas de Stoker conseguindo um todo coerente. Uma interessante proposta de literatura fantástica espanhola, disponível e gratuita na editora digital Sportula.

Dariya: Uma notícia no portal Europa SF a dar conta dos nomeados para o prémio Ignotus 2014 levou-me numa busca pelos textos escolhidos. O prémio é o equivalente espanhol dos Hugos, com categorias nas vertentes romance, novela e conto a distinguir autores espanhóis e internacionais. Ler os contos nomeados revelou-se tarefa difícil. Ou o meu google-fu anda em baixo, ou não há versões publicadas online. Parece que só nas antologias em papel é que estes podem ser lidos. Apenas consegui ler este Dariya, de Nieves Delgado, que surpreendeu pela elegância literária de um conto que homenageia Asimov e as suas histórias de robots. A autora estrutura a narrativa tal como Asimov o faria, concentrando-se num possível paradoxo induzido pelas leis da robótica, e no processo vai revelando a sua visão de futuro num elegante infodump que nos deixa a imaginar avançados andróides de cérebros positrónicos. Só o final se afasta do espírito asimoviano, com uma revelação chocante sobre a percepção individual do que é real que remete para a paranóia de P. K. Dick. O paradoxo que desperta a narrativa é a incompreensível inação de uma andróide avançada, quase indistinguível de um humano, ao assassínio do presidente americano. Detida para averiguar se violou ou não a primeira lei da robótica, acaba por revelar que não necessitava de ter agido para salvar o presidente porque este também era um andróide. Um intrigante mas previsível plot twist, que encerra na perfeição com a revelação que o engenheiro cibernético, programador de cérebros positrónicos, a quem foi dada a tarefa de interrogar a andróide também não é humano. Fica no ar a suspeita. No mundo deste conto será que já não há humanos, substituídos por máquinas que esqueceram a sua origem artificial através de amnésias induzidas? Conto intrigante, bem escrito, um pequeno vislumbre da forte comunidade editorial de ficção científica espanhola, cujo carácter vibrante se mostra através destes prémios e do trabalho de editoras e clubes literários regionais, um pouco por toda a Espanha.

A Benção da Floresta: O que encanta nos contos de Carina Portugal é uma certa ingenuidade infantil que se traduz em fábulas que mesmo que sejam negras descaem-se sempre para um deslumbre mágico com os mundos de sonho permitidos pela fantasia. É muito o caso deste conto, variante da antiquíssima estrutura narrativa do amor que quebra barreiras e maldições, aqui revisto através de um caveleiro abrigado por uma árvore enquanto atravessa uma floresta na neve, árvore essa que se revela uma donzela cujo amor pelo cavaleiro lhe irá permitir regressar à humanidade. Lê-se como uma bem escrita e deliciosa fantasia romântica adolescente.