quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Harmony


Project Itoh (2010). Harmony. São Francisco: Haikasoru.

Este curto e muito curioso livro recordou-me um género hoje quase extinto de utopia em ficção científica: a sociedade perfeita (ou a aperfeiçoar-se), reflectindo os melhores valores humanos combinados com tecnologia avançada e engenharia social benéfica que, sendo humana e um salto qualitativo sobre as injustiças do real, acaba por se revelar como fundamentalmente opressiva e baseada em consensos que nulificam o indivíduo face a uma ideia de utopia. Note-se que não estou a descrever distopias. Estou claramente a pensar nas visões de comunidades científicas, tecnocráticas ou ecológicas representativas de conceitos sociais progressistas e que Ballard satiriza de forma tão corrosiva em Running Wild, romance onde o subúrbio é a utopia humanista provocadora de violência selvática nas crianças que cresceram rodeadas de bonomia.

Na utopia de Itoh o mundo recompôs-se após um período histórico confuso que mescla de forma muito intrigante a visão clássica do apocalipse nuclear com o corrente mundo descentralizado e mais sujeito a ameaças de terroristas ou tiranetes regionais do que a confrontos de destruição mutuamente assegurada entre hiper-potências de dedo no gatilho atómico. Houve detonações nucleares que provocaram uma era de doenlas e mutações radioactivas, mas a ciência acabou por triunfar e o mundo reconstruiu-se. Após cientistas japoneses proporem um sistema de controle de doenças a partir da implantação de nanotecnologia controlada por software centralizado uma nova forma de organização política alastra-se num planeta onde estados-nação e organizações trasnacionais cedem terreno a um consórcio global de administrações médicas. Estas assumem a responsabilidade pela vida das pessoas, equilibrando as condições de saúde, erradicando doenças e garantindo uma longa esperança de vida. Nesta nova sociedade os antigos valores que quase levaram ao colapso da humanidade são erradicados através de um rigoroso controle de informação e da instilação de valores de bondade individual e social como filosofia domimante. O resultado é um mundo quase homogéneo, uma espécie de utopia bem educada de conformidade pelo saudável. A rápida evolução desta sociedade depressa fez alastrar o controle da saúde ao campo intelectual, com atitudes e acções fortemente controladas por um consenso de nada fazer que possa de alguma forma magoar ou traumatizar.

Nem todo o planeta vive desta forma. Resistem bolsas de humanidade que sobrevive de formas mais naturais, apesar dos esforços das administrações médicas para os trazer para os seus domínios. Mas a tendência é inexorável e são cada vez menos os locais no planeta onde a harmonia social não chega. Ainda se pode ir mais longe. Os implantes que asseguram o equilíbrio saudável das pessoas são controlados por software centralizado em servidores, que por sua vez pode ser modificado para alterar percepções e estados de consciência. E talvez nulificar a consciência humana, reduzindo a humanidade ao estado de autómatos funcionais de inteligência limitada, capazes de funcionar em sociedad avançada mas incapazes de empatia e sentimento de individualidade. É essa a harmonia do livro, um estado de nirvana social que eliminaria o principal problema de saúde: a individualidade humana em todas as suas infindas variações.

Mergulhamos na história pelo ponto de vista de Tuan Kirie, uma mulher inadaptada, agente das forças de segurança de saúde, organismo supra-nacional que coopera com governos e instituições como braço armado das autoridades médicas. Apesar de representar o rigor médico social, sente-se oprimida pela constante bonomia conformista. As mais fortes recordações do seu passado envolvem um grupo de jovens igualmente inconformista, de entre os quais se destaca Miach Mihie, rapariga culta e rebelde que incentiva as amigas ao suicídio como forma única de libertação da pressão conformizante da sociedade utópica.

Este mundo de perfeição galopante é abalado por uma série de suicídios em massa. Uma organização oculta conseguiu penetrar nos servidores da administração médica e provocar a epidemia de suicídios utilizando os mesmos sistemas de bio-software que mantém a população saudável. Fica no ar a ameaça de piores atrocidades, o que leva os altos escalões da sociedade a entrar em pânico, desenvolvendo os esforços possíveis para travar a potencial queda da sociedade perfeita.

É aqui que Tuan vai embarcar numa aventura de contornos policiais onde irá confrontar o seu passado pessoal, o dos pais e o mais tenebroso de Mihie, que guarda diversos segredos. Adoptada por uma família nipónica, Mihie é oriunda de uma zona remota da Chechénia. A sua etnia tem como característica comum a ausência de consciência de si mas as sevícias sofridas às mãos dos russos despertam em Mihie a consciência do existir da pior forma possível. O trauma é tão grande que as sessões de terapia intensa apenas o conseguem mitigiar, até porque Mihie sabe que é possível ascender (ou decair) a um estado de consciência em suprema felicidade, vivendo o momento sem os mal-estares associados à individualidade. Não sem grande surpresa, é a principal instigadora dos ataques terroristas cujo verdadeiro alvo é o pânico das altas autoridades médicas. O objectivo é fazê-los acreditar que a sociedade se encontra prestes a mergulhar no caos e levá-los a despoletar a sua arma do juízo final: activar os sistemas de controlo cerebral presentes na tecnologia de implantes vigilantes de saúde e mergulhar a humanidade num estado de nirvana harmonioso, dissolvendo a individualidade do ser num imenso colectivo que mantém todas as aparências da humanidade normal mas sem qualquer traço de auto-consciência.

É intrigante a forma como Itoh desenvolve este romance. A história segue uma estrutura clássica de ficção científica, com infodumps narrados e uma sucessão de peripécias que coalesce na revelação transformativa final. Mas Itoh não se resume ao mero contar de histórias. Nos momentos chave, aqueles que obrigam ou implicam estruturas de pensamento avançadas, empatia ou noção de indivíduo, Itoh substitui a língua literária por uma metalinguagem inspirada em XML, etiquetando emoções e categorizando pensamentos. Este pormenor de escrita experimental sublinha o final infeliz do livro. Supostamente a história é contada pela nova humanidade, imersa no nirvana da colectividade e incapaz de compreender sentimentos ou noções de individualidade, uma vez que a nanotecnologia lhes desligou essas estruturas mentais. A tecnologia metalínguística é a forma artificial que resta a futura humanidade de Itoh para se sentir humana.

O détournement dado ao conceito de futurismo utópico neste livro é qualquer coisa de brilhante. Itoh vai mais longe do que a habitual aproximação à utopia como elemento que requer o totalitarismo de consensos oculto sob o brilho de novas sociedades que enterrem as imperfeições do mundo real. Para Itoh a verdadeira utopia só se consegue desligando, literalmente, o que nos faz sentir pessoa e mergulhando a humanidade numa espécie de enxame colectivista onde a noção de indivíduo é uma recordação histórica, perceptível apenas através de constructos tecnológicos.