quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
The Alteration
Kingsley Amis (1988). The Alteration. Nova Iorque: Carrol & Graf.
É intrigante como Kingsley Amis consegue criar um ambiente de história alternativa de uma forma insidiosamente subtil, quase sem recorrer ao clássico infodump. Quando a meio de uma conversa entre personagens solta uma linha do género "o vice rei do Brasil proclamou um édito" quem se recorda minimamente da história fica a saber que em 1960 o Brasil era uma colónia portuguesa sob protecção da coroa britânica. Mas há melhor. Casualmente lemos que his eye passed over St. Lemuel's Travels and The Wind in the Cloisters, slowed down at a collection of Father Bond stories, and rested finally on Lord of the Chalices. São estes pequenos pormenores que tornam The Alteration um livro tão delicioso. Amis reinventa o século XX à luz do obscurantismo religioso e dá-nos preciosidades como as pinturas sacras no novo estilo de De Kooning ou esta subtil mas hilariante reinterpretação de clássicos da literatura de aventuras e fantástico à luz da defesa da moral, bons costumes e edificação religiosa. O Senhor dos Anéis torna-se Lord of the Chalices, talvez com uns nobres monges a salvar o mundo de um anti-papa tenebroso, o Vento nos Salgueiros tornar-se um Wind in the Cloisters onde aposto que Mr. Toad é um abade excêntrico, Gulliver torna-se santo e descobre novos mundos para a cristandade nas suas viagens, e tenho a sensação que das aventuras do Padre Bond o shaken, not stirred se manteria mas a ímpia fornicação com perigosas beldades desapareceria das aventuras do agente secreto ao serviço do papado.
O que aconteceria à história mundial se a reforma e contra-reforma nunca teriam acontecido, se Lutero tivesse preferido os luxos eclesiásticos à pregação e o rei inglês acatado os ditames romanos em vez de proclamar a igreja de Inglaterra é o e se...? que inspira este livro. Estamos em 1960 mas pela descrição do espaço ficcional mais parece estarmos em 1560. O mundo ficcional do livro é uma história alternativa onde a reforma de Lutero o transformou em Papa e o poder romano se manteve inalterado. O dogmatismo religioso impera e o santo ofício trata de dar conta das ovelhas que se tresmalham do rebanho.
O ponto de partida é reconhecida elegância cultural do império britânico, que se estende da Europa às Américas (excepto na Nova Inglaterra independente), protege as índias, a China e o Brasil, e não tem rival nem na extensa Muscóvia ou na intrépida Germânia, nem no extenso e ameaçador mundo Turco. Maior que o reino inglês é o todo-poderoso papado, poder temporal e espiritual que assente no Vaticano comanda a partir da cidade-luz os destinos do mundo ocidental. Todos acatam o poder espiritual de Roma num mundo onde a electricidade é vista como algo cujos perigos ultrapassam os benefícios, a iluminação a gás clareia as noites onde expressos se deslocam movidos por engenhos diesel que colocam em movimento motores de engrenagens e a antiga ordem mundial medieval se fossilizou. Bem vindos a 1976, depois da morte do santíssimo jesus cristo, onde o mundo se divide entre a cristandade ocidental que conseguiu implantar-se à força de armas nas índias e Japão, e a diabólica ameaça turca que domina o próximo oriente e mantém um pé nos recantos mais selvagens da Europa.
Mergulhamos na história de Hubert, inocente estudante de música na academia de Santa Cecília, no centro espiritual da Inglaterra católica. Os dotes musicais do rapaz são consideráveis, mas é a sua voz perfeita que atrai as atenções dos melómanos romanos. Para engrandecer a glória de deus é decidido que o jovem deverá ser castrado para tentar manter a pureza cristalina da sua voz. Os pais são forçados a receber a honra com braços abertos, porque senão o Santo Ofício encontra formas dolorosas que os fazer ver a luz e a verdade. Se o pai, mercador abastado ciente da sua posição social, acata a ordem papal sem pestanejar a mãe não está nada de acordo com a pequena alteração que tem de ser feita ao seu filho e encontra no seu confessor a força moral para resistir. Moral e não só, já que o padre confessor se especializa em aliviar mais do que males de alma.
A pressão do papado é fortíssima e inclui uma deslumbrante visita a Roma, centro do poder temporal e espiritual da igreja, cidade que congrega o melhor e o de mais belo em toda a cristandade. A vontade pessoal dos indivíduos nada conta frente ao poder divino e glória papal. Que o digam os portugueses, alvo de sanções económicas depois de um dos seus construtores de pontes ter recusado o convite papal para trocar Lisboa por Roma (um detalhe curioso do romance). A própria viagem à cidade é feita através da mais moderna das tecnologias ferroviárias que permitem que em poucas horas se chegue ao centro nevrálgico da cristandade. Viagens aéreas só em lentos dirigíveis, mais apropriados às distâncias transatlânticas, já que o voo com asas fixas ainda está a ser descoberto por intrépidos cientistas da Nova Inglaterra.
Os colegas de colégio e o embaixador da Nova Inglaterra em Londres são os únicos aliados que Hubert tem. Pela sua tenra idade incapaz de compreender perfeitamente o que dele exigem, intui (e as conversas com o irmão devasso ajudam) que estará a perder algo de fundamental. Em desespero, opta por fugir e procurar abrigo na embaixada das américas, cujos cidadãos iconoclastas rejeitam o poderio de Roma e não estão sujeitos aos ditames papais. Tendo conhecido o jovem ao visitar a austera academia e ficado encantado pela sua voz, torna-o visita regular em sua casa, o que despoleta uma paixão no coração da sua jovem filha. Impetuoso, o embaixador depressa engendra um plano para levar Hubert para as américas no voo do incomparável dirigível E.A. Poe (nesta ucronia de Amis um general americano morto nas guerras de conquista do México). À última da hora a ironia ataca: Hubert revela-se acometido por uma doença grave e é forçado a desembarcar para uma intervenção cirúrgica. Fugindo aos pais, autoridades e igreja para não ser castrado, Hubert descobre que tem uma mal-formação testicular que obriga à remoção destes e acaba por ser castrado. A alteração que dá título ao livro acaba por ser feita, e Kingsley Amis brinca com fina ironia com o velho ditado deus escreve direito por linhas tortas.
Se as desventuras do inocente jovem Hubert dão profundidade emocional ao livro, este destaca-se pela capacidade que Amis teve de reinventar a história mundial à luz de uma pequena alteração na história real. O título é claramente um duplo sentido sobre a operação cirúrgica e a dissonância cognitiva do leitor que lê sobre um mundo plausível, muito similar mas profundamente diferente do real. Entrando no campo dos e se... Amis imagina que Lutero, ao invés de ser excomungado, é conduzido ao papado e solidifica o poder da igreja. Nada de Reformas e contra-reformas, a Inglaterra mantém-se católica e boa parte da história da europa não acontece. Amis não resiste a pintar o seu novo mundo com uma pretensa mas bem imaginada evolução histórica - a separação da Nova Inglaterra nunca é bem explicada, mas Washington não é relevante e a mistura entre holandeses e ingleses impera.
A crítica aos obscurantismos religiosos é pervasiva numa obra onde o poder papal se enquistou numa ditadura política e moral onde o Santo Ofício mantém a dissidência social na ordem, mas Amis não esquece que a injustiça floresce noutras partes do mundo. É muito interessante ver o colocar na boca do liberal, progressista e anti-papal embaixador da Nova Inglaterra o mais básico racismo quando se refere aos índios nativos.
O final do livro revela-nos boas surpresas. A história de Hubert é rematada em círculo, com os untuosos melómanos que abrem o livro a encerrar as páginas, extasiados após uma performance do azarado castratti. Mas se narrativamente é um toque de génio para o amante das ficções especulativas o que vem antes deste final é uma delícia. Passaram-se quinze anos desde os infelizes acontecimentos e a cristandade está a recuperar de uma vitória pírrica sobre a arábia e o turco. Note-se que Amis não fala de império otomano, preferindo o antigo pejorativo e ameaçador Turco. Consciente dos problemas de crescimento populacional desenfreado trazido por um antigo édito do papa luterano que classifica como anátema qualquer menção à contracepção, e vendo que pesquisas científicas para controlar a população baseadas em pragas criadas em laboratório ou envenenamento das águas urbanas, o papa decide que a melhor forma de aparar o excesso de gente é lançar uma guerra mundial.
Romancista de renome na literatura britânica, Amis era grande admirador de ficção científica e este livro é uma das suas homenagens ao género. O grande público conhece-o mais como o pai desse outro Amis, nome de renome na vertente popular da literatura séria com l maiúsculo, um daqueles romancistas que ainda provoca assomos de desmaio e surtos de gritinhos nas fangirls babadas. Este livro não está livre de intrigantes vénias à FC. Nas primeiras páginas encontramos isto: "TR, or Time Romance, was a type of fiction that appealed to a type of mind. It had readers among schoolboys, collegiates, mechanics, inventors, scribes, merchantmen, members of Convocation and even, it was whispered, those in holy orders. Though it was formally illegal, the authorities were wise enough to know that to suppress it altogether a disproportionate effort would be necessary, and contented themselves with occasional raids and confiscations. Its name was the subject of unending debate among its followers, many of whom would point to the number of stories and novels offered and accepted as TR in which time as such played no significant part. The most commonly suggested alternative, Invention Fiction, made a beguiling acronym, but was in turn vulnerable to the charge that invention was no necessary ingredient of TR. (Science was a word and idea considered only in private: who would publish a bawdy pamphlet under the heading of Disgusting Stories?) CW, or Counterfeit World, a class of tale set more or less at the present date, but portraying the results of some momentous change in historical fact, was classified as a form of TR by plenty of others besides Decuman, if on no firmer grounds than that writers of the one sometimes ventured into the other." Fora de contexto estas até nem seriam nada más nomenclaturas e definições de vertentes da ficção científica. Gosto particularmente do delicioso "Invention Fiction, made a beguiling acronym", que dentro de contexto é ainda mais audaz e intrigante.
Romance de história alternativa cuidado, bem escrito e subtil nos infodumps, The Alteration surpreende pelo seu imaginário e pela profunda e respeitosa vénia que faz à literatura de género.